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sábado, 29 de dezembro de 2012

Crítica Mortal


 Não se pode perdoar quem ao invés de Cervantes, James Joyce, Kafka, ou até mesmo Shakespeare, resolve desperdiçar seu tempo de vida lendo um livrinho medíocre daqueles. Nem mesmo se tal leitura fosse motivada por uma boa intenção. Uma crítica por exemplo. Uma pessoa assim sequer merece estar viva!

 Estava decidido. Extinguiria a má literatura do mundo. Seu sucesso como crítico literário havia lhe concedido o direito de julgar os bons e os maus. Separar o joio do trigo. Tanto de escritores quanto de leitores. E é por eles que ele resolve começar. Desses que gastam tempo e dinheiro com cultura inútil, o que inclui ficções regadas a sexo hard para senhoras idosas mau amadas, leitores obcecados pela cor cinza, guia de viagem para pessoas que sequer teriam condições para mudar de estado, quanto mais de país!, auto-ajuda para mulheres confusas quanto ao que vestir, guias do moda parisiense para brasileiras ( será que se esqueceram o calor daqui?). 

  Enviou dúzias de cartas a editores exigindo que fosse interrompida a publicação desse tipo de coisa. Cartas onde constavam pelo menos cem títulos que mereciam, com urgência, sair do mercado. Acompanhava uma extensa argumentação sobre a necessidade de rigor quanto ao exame e seleção de todo material recebido pelas editoras. 

 Nenhuma resposta. 

 Insatisfeito, começou a matar. A espreita de todo aquele com um livro ruim nas mãos: nas saídas do metrô, dos trens, ônibus e bancos. O método era sempre o mesmo: uma rápida conversa com a "vítima" a fim de averiguar sua cultura literária, um beco escuro, um corpo deixado no chão. Para chamar um pouco a atenção, assassinava periodicamente grupos específicos de leitores, de um mesmo livro, de um mesmo autor. 


 Numa tarde chuvosa o grande crítico literário apareceu morto num ponto de ônibus. O assassino descoberto também era um crítico, de críticos literários. 

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

" Coração de Pedra" de João Alexandre




Deus abandonou seus templos, despediu seus sacerdotes, deixou no altar os sacrifícios. Sim, ele se foi, mas não sem deixar aviso: estaria em outra casa, que ele mesmo criou com suas mãos. E diante desse sumiço, muito acreditaram até que ele havia ficado doente e até morrido. Não sabiam mais reconhecê-lo longe de toda pompa, e cerimonialismo. Mas não, confortavelmente estaria escondido, no coração das párias, dos loucos, do que como ele, esquecidos. 

O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens; 
Atos 17:24

Ateísmo e Liberdade



 Particularmente compreendo o ateísmo como camuflagem de um problema moral com a própria idéia de liberdade. A maioria dos ateus compreendem a figura de um Deus pessoal como um legislador moral. Como Dostoievski, entendem que "Se Deus não existisse tudo seria permitido". Acontece que é isso que se deseja, que tudo seja enfim permitido. Sejamos honestos: gostamos da liberdade, e tendemos sempre a reduzirmos ao máximo o número de nossas obrigações morais. Para muitos ateus, Deus constitui uma série de obrigações morais desnecessárias. Esse tipo de ateísmo limita-se a simples negação da idéia de Deus. Algo que precisa ser respeitado e aceito com cordialidade. O ateísmo sartriano é um exemplo disso. Contudo, para alguns ateus não basta apenas negar pessoalmente a crença numa deidade pessoal. É preciso opor-se a ela. Isso acontece por um motivo simples: porque gostamos da liberdade, mas não gostamos de algumas de suas conseqüências. Justificamos as más conseqüências de nossa liberdade como uma prova da impossibilidade da existência de Deus. Isso significa: gostar da liberdade, contudo, sem querer assumir as suas conseqüências. Esse é o perfil típico de qualquer anti-teísta, o que compreendo como desonestidade intelectual, justamente porque Deus é concebido como uma entidade por onde se procura justificar o mal.

Ora, se Deus não existe não há nenhum bem ou nenhum mal a se justificar nele. Toda iniciativa parte do homem, e isso ninguém, dos anti-teístas, deseja assumir, pois isso implica não apenas o conhecimento, a tecnologia, as vacinas, mas também a fome, as guerras, o capitalismo excludente. Alguns ateus necessitam de Deus para culpá-lo e por isso não desejam extirpá-lo do debate público, mas apenas de um tipo de discurso considerado razoável.

Se para muitos ateus, Deus constitui um problema moral, para muitos teístas, Deus constitui um dever para com a vida. É claro que há teístas que podem compreendem isso das mais diversas formas. Por influência de Kierkegaard compreendo que esse dever para com a vida se estabelece pela paixão. O sentido da vida se estabelece ai: aquele que encontrou o seu dever no mundo, encontrou a Deus, o sentido de sua vida. E isso acontece quando se encontra o motivo pelo qual se é capaz não só de se viver, mas também de morrer. Sabemos que para isso não se tem necessidade de ser um teísta confessional, e que por isso ateus podem ter encontrado Deus sem o saberem enquanto muitos cristãos não o encontraram ainda.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Natal é o Seu Avesso




Penso o natal como a manifestação do salvador do mundo na história e na manjedoura. Sim, na manjedoura! Num estábulo sujo e desconfortável. Sem as mínimas condições para um parto decente. Sim, penso que nessas condições, pela ordem natural das coisas, o natalício de Jesus poderia não ter acontecido. Que talvez Jesus não tivesse nascido. Que no máximo, a criança poderia ter chegado a poucos dias de vida. Mas nascendo mostrou-se já vencedor da morte! 

Mas há algo de mais surpreendente no natal: as crianças que hoje nascem nas mesmas condições, ou até piores. Esse é o natal: a lembrança que a história não é feita pelos que nascem em berços de ouro, mas na sarjeta. Sendo assim, não compreendo o natal como uma festa, o que para muitos seria o óbvio, mas um compromisso com a vida. Sabemos bem que o natal não é uma festa ao consumo próprio, mas justamente ao seu oposto, é uma festa á doação. Que o natal consiste justamente no seu avesso.  A maioria não progride nessa relação. Não doa. Não se doa.  

Mas há algo mais: lembrar-se de quem sofre não deve contentar-se a uma simples homenagem. É preciso ir em direção a eles. Como os reis magos que depositam a seus pés suas riquezas. E passando por esse teste, é impossível que eu não tenha vergonha de mim mesmo. Que eu compreenda que deixo a desejar, e muito. Sim, porque ainda não aprendi a ser um homem de benevolência, embora não me faltem exemplos.

Não sei em que você acredita: se em Deus ou no diabo. Se em anjos ou seres do espaço. Ou até mesmo se não acredita em nada disso. Se acredita na política, na revolução proletária, ou simplesmente deixa vida passar sem qualquer ideal. Ame e tudo estará resolvido. E isto significa: olhe menos para você e se importe com aquele que precisa da sua ajuda. Não espere nada em troca. Não cobre nada em troca. A vida é injusta porque as pessoas cobram de mais umas às outras.

Feliz Natal a todos!

sábado, 24 de novembro de 2012

Capítulo Quatro de "Absinto"


Não se pode afirmar quem se é sem qualquer lembrança. Sem lembrança é impossível afirmar coisa alguma: linguagem, cultura, história, identidade. Não há vida para os que não recordam. Não há morte. Eles sequer existem. Fechados sobre si mesmos não conhecem sentimentos como o amor e o ódio, a tristeza ou a alegria. São imunes a qualquer estímulo de comunicação. Tudo é silêncio. 

 Não reconheço ninguém. Ando sem rumo, pela estrada deserta, sem ser visto. Parece não haver comida ou água em parte alguma. Não sinto fome ou sede. Estou confuso. Angustiado. Se eu chorar e gritar, não haverá quem me escute. Sou como um naufrago em alto-mar. Era o inferno. Eu deveria saber. Mas onde está o fogo e os gritos das almas angustiadas que suplicam por misericórdia? Onde está o diabo e seus demônios? Pois agora sei o que é o inferno: a solidão absoluta, e por toda a eternidade estar preso aos próprios pensamentos e sentimentos, sem possibilidade alguma de expressá-los. Havia me tornado um fantasma. 

As máquinas não páram, não dormem, produzindo controle. O fim do trabalho é o próprio trabalho, pois num mundo sem morte o ócio é muito maior. Não há fome, pobreza ou riqueza. Não há a mínima desigualdade. Sem a morte não há a necessidade de recursos, seja de medicamentos, roupas ou dinheiro. Sem dinheiro, não há diferença entre os homens.


Reunidos, pareciam evocar a morte numa espécie de culto religioso.

Honravam a morte como um Deus que havia prometido retorno. Mas nada de velas, preces ou mortificações de qualquer espécie. Afinal, tudo isso seria inútil. Estavam ali reunidos para lembrar. Para tentar lembrar. A lembrança nos concede a dimensão da passagem do tempo. É com a lembrança que envelhecemos. E morremos.

Tudo da forma mais discreta possível. Havia a crença de quando algum deles se lembrar de tudo, a morte retornaria ao mundo, trazendo a ordem natural de todas as coisas. E assim, num ciclo interminável, pouca antes de suas memórias se esvaírem, as deixavam registradas em desenhos quase infantis, pré-históricos. Havia uma pequena inscrição na parede, sem autor identificável, e que ao menos, pudesse ser lida pelos presentes:

“Lembre-se que nunca foi o que é agora, e por esforço não será amanhã o que é hoje. Lembre-se que já foi jovem, para que reconheça que hoje você envelhece e tenha saudade da juventude. Lembre-se disso a todo custo. Escreva o que vier a cabeça. Você esquecerá desse compromisso freqüentemente. Leio-o sempre embora você se esqueça disso também.”

Uma coisa era certa: no dia em que alguém se lembrasse, morreria. E mortos não podem transmitir o que sabem. Lembrar e morrer são esforços que se fazem por conta própria.

Boa Notícia!

Um deles lembrou, e morreu. Justamente o que entre eles era reconhecido como um poeta. Das imagens. Ficou lá, estirado no chão, apodrecendo e exalando mau cheiro. Ninguém sabia o que fazer com ele. O que fazer com um defunto. A carne foi dando lugar a exposição dos ossos e de alguns órgãos internos. Descobriram do que somos feito. Mas se esqueceram disso.

Estava feito. Alguma coisa nova iria acontecer. O relógio do universo estava começando a girar seus ponteiros novamente.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Porque Sou Anarquista e Cristão?






1- Acredito em Deus e na sua completa transcendência. Isso o distingue da objetividade e longe da possibilidade de investigação pelas ciências, da razão instrumental e do uso que de seu conceito fazem as culturas. 


2- Acredito, contudo, como atestam as escrituras, que esse Deus, radicalmente transcendente, se encarnou. 


3- A encarnação não tornou Deus imanente ao mundo natural, pelo contrário, manteve a distância entre criador e criatura, conservando assim ambas as naturezas, dialéticamente unidas.


4- A transcendência encarnada, segundo as escrituras, isto é, Jesus Cristo, constitui essa unidade dialética, onde a eternidade entra no tempo e Deus passa a habitar na história. Contudo, Deus, que é transcendência e por isso eternidade, não se torna totalmente temporal e histórico, logo, Jesus não constitui um simples homem preso a uma cultura e um tempo. Sua mensagem portanto transcende a cultura a que foi dirigida. Ela se dirige a todos os homens. 


5- A transcendência encarnada, conservando sua natureza, é  escândalo ao mundo, se opondo violentamente (totalmente) a ele. "Mundo" segundo o Novo Testamento, pode seguramente ser compreendido como "arquia" ou "instâncias de poder, de governo". O político propriamente dito. 


6- O divino é antagônico ao político. Deus é antagônico ao mundo. Sendo assim, qualquer instância política que se autodenomine divina ou sagrada, constitui uma falsificação. 


7- Como atesta Tiago 4.4: " Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus". 


8- A instituição Cristã, enquanto ordem submissa ao poderes políticos, com hierarquias, disciplinas e outros elementos estranhos ao evangelho, constitui uma falsificação do conceito cristão de ecclésia (assembléia). Jesus Cristo é o criador da Ecclésia, Constantino, o criador da instituição cristã, ambos completamente diferentes entre si. 


9- Tais falsificações são atestadas por diversos autores: a fé (relação pessoal e exclusiva com o sagrado) é substituída pela segurança dos dogmas oferecidos por rígidas teologias e sermões dos clérigos, excluíndo a responsabilidade pessoal de cada indivíduo em responder por conta própria o que é o cristianismo (Kierkegaard). Em moral, o uso da violência é amplamente utilizado por uma instituição que se denomina promotora da paz (Tolstói). Frank Viola se dedica em expor a diferença cultural entre ecclésia e instituição cristã. Jaques Ellul e Vernard Eller, mais conceituais, procuram identificar tanto na tradição religiosa hebraica, como no Novo Testamento, uma mensagem originalmente libertária, em suma, em expor, porque o cristianismo, desde sua formação primitiva como uma seita judaica por Jesus de Nazaré até os dias de hoje, é essencialmente anti-estatal, anti-hierárquica, anti-tributária (coletivista) e anti-institucional. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Deserto


Porque alguns homens insistem em viver nos desertos? 


É evidente uma distância entre eles e os homens comuns. Uma distância perigosa, onde a solidão, a vida austera e o discurso ácido contra os males da civilização substituem a confortável vida em comunidade, a submissão em troca da própria vida (onde o capital se torna uma autoridade que exige obediência) e a ausência de senso crítico. Homens assim jamais serão ouvidos. Sua razão não é adequada ao discurso que predomina e que exige total obediência. Assim é a vida da maioria dos homens. É angustiante a constatação de que embora “povo do livro”, os cristãos são, em sua maioria, paradoxalmente, despreocupados com qualquer tipo de formação intelectual. Justificam a autoridade religiosa a fim de se livrarem do compromisso com o ensino. Lêem pouco, estudam pouco, não se tratando, porém, de uma simples falta de oportunidade. Despreocupados, fazem do pastor (ou padre) alguém que estuda o cristianismo por eles, alguém que é cristão por eles. 



Porque alguns homens insistem em viver nos desertos?



Porque nos desertos não podemos fugir de sermos nós mesmos. De assumirmos riscos e responsabilidades, de sermos livres e por isso inadequados ao mundo. De pagar com sangue por essa liberdade. De prepararmos o caminho do Senhor que é de liberdade. Quando cristãos entenderem que espiritualidade não se trata de uma simples questão de obediência, mas de responsabilidade para assumir riscos, começarão a entender o que é ser um cristão.

O Filho Pródigo






Talvez você considere a parábola do filho pródigo apenas um texto bonito para ser pregado a não crentes ou crentes decepcionados com a igreja num domingo à noite. Não é este o caso. Deus ama seus filhos onde quer que estejam: perto ou longe. Este texto é para ambas as pessoas. À todos os crentes que, independente das circunstâncias se encontraram desencorajados e desestimulados, tristes e aborrecidos, incompreendidos ou simplesmente  se sentem ignorados. Há de se considerar que muita gente assim, com toda a persistência, freqüentam nossas igrejas. Por outro lado, seria um erro grosseiro comparar uma denominação qualquer com a casa do pai, descrita na parábola. Contudo, podemos tornar nossa vida em comunidade integrante dessa casa. Nesse esforço surge a igreja: a comunidade que reproduz à sociedade o amor de Jesus Cristo, que não distingue bom de mal, justo de injusto, que é gratuito. 


A Juventude é Uma Aventura Perigosa. Ele tem tudo em suas mãos, mas seu coração não está satisfeito. Os bens de seu pai são maiores do que a presença de quem lhe amou por toda a vida. É jovem, e por isso, tem no coração o desejo por aventura e perigo. Deseja enfrentar o mundo lá fora com as próprias forças, confiante que irá vencê-lo. Abandona a segurança do lar. Decidiu partir. Indo para longe de quem, por toda vida o sustentou e cuidou. De quem lhe ensinou sobre os perigos que o mundo reserva a jovens simples. Mas sua curiosidade lhe impulsiona à fascinante beleza do desconhecido. Decide partir, e mesmo com toda a angústia da separação, seu pai não se recusa a lhe negar coisa alguma. Oferece tudo. Junto com o filho rebelde e aventureiro, vai-se embora na caminhada parte do coração de seu pai. Como nos mitos gregos, deseja enfrentar seu destino. Seu bondoso pai não estará lá fora para socorrê-lo, mas não deixará a porta de casa até ver seu filho retornar ao lar novamente. Diferente dos gregos, que não eram filhos dos deuses, não podemos deixar de sermos filhos de Deus. Não podemos fugir de nosso lugar de origem. É inevitável que ele retorne para o lar. É inevitável que ele aprenda que no mundo lá fora não há lugar para ele. Lá fora ele não é filho de ninguém e por isso, não haverá piedade para ele. Aprenderá que longe de casa não se pode ir a lugar algum. Ele retornará, mas não como a mesma pessoa de antes.


Voltar ao lar. Tornar a trazer alegria ao coração de um pai que espera. A alegria do reencontro, que evoca a lembrança de quando viu seu filho pela primeira vez, ainda pequenino e indefeso, chorar em seus braços. Novamente para os seus braços ele retorna. 


Essa é a sua história, mas também de outros tantos que como ele se convenceram de que poderiam encontrar algo melhor do que a casa do pai que se dedicou e ofereceu tudo a ele. A história de cada um de nós. A história de nossa viagem rumo ao desconhecido e de nosso retorno para a casa. O mundo é um grande deserto, onde os poucos oásis estão lotados de pessoas que competem entre si (e até matam por isso) por um pouco de água, comida e descanso. Por isso, não espere sobreviver por muito tempo lá fora. No deserto você não é filho, não está indo para lugar nenhum e não tem muito tempo de vida, aliás, não tem muito tempo para descobrir essas coisas. 

O Que é Teologia? (II)




É estupidez oferecer algum crédito a debates desnecessários: Porque Deus permite o mal? Porque Deus permite que crianças inocentes morram de fome na África ou em guerras no Oriente Médio? Somos livres ou predestinados? É a bíblia confiável? E por ai vai. Os questionamentos são infinitos. Contudo, a maior parte deles é oriunda de uma certa confusão mental a respeito da história, método e objetivos de uma boa reflexão teológica. 

Tentarei ser sucinto. A teologia possui como prerrogativa fundamental responder três questões: “Quem é Deus?”, “O Que ele quer de nós?” e “O que nós queremos dele?”. Ela pode se esforçar em responder essas questões de duas maneiras específicas. Uma, crítica, utilizando-se de elementos de várias ciências, como crítica literária, filosofia, história e etc. Nesse sentido a teologia constitui uma ciência como as demais, pois seu interesse limita-se a investigação cultural, histórica e social da forma como os homens compreenderam o sagrado e tentaram de alguma forma defini-lo. Tratando-se da bíblia, um documento importante nessa investigação, a partir da análise crítico-textual, procura-se entender como seus redatores entenderam a partir de épocas distintas a relação de um povo com seu Deus. O que significa também entender como a idéia de Deus foi evoluindo histórica e sociologicamente. 

Nesse sentido, os vários redatores da bíblia não são uníssonos entre si. Um exemplo simples: como pode o mesmo Deus do primeiro testamento, que ordena a morte de pecadores, ser o mesmo do Novo Testamento, que lhes concede o perdão? Uma pergunta que tira o sono de muitos cristãos. Porém tratando-se de crítica textual, fazemos algumas descobertas interessantes sobre isso: 1) Segundo Julius Wellhausen o Pentateuco trata-se de uma construção teológica plural, posteriormente reunida, já tardiamente. Se de fato existe uma contribuição mosaica em sua redação, como atesta a tradição, é mínima, porém nuclear. Há pelo menos três escolas teológicas no Pentateuco: Eloísta, Javista, Sacerdotal e Deuteronomista. Divergências nessas tradições serão inevitáveis. O que acontece é que elas foram reunidas a fim de formarem um único texto, uma única fé e um único povo. 2) Essas teologias evoluem pois expressam a transformação de um povo semi-nômade em sedentários à politicamente organizados. 3) O Pentateuco não fala sobre a vida pós-morte. Sua teologia, é efetivamente da vida cotidiana. Não há, da parte de Deus, promessa de céu ou inferno, mas sim de uma vida próspera e longa. Tanto que os judeus ortodoxos na época de Jesus (saduceus) por terem apenas o Pentateuco como livro de fé religiosa, não acreditavam em vida após a morte. 

O que se conclui a partir de tais fatos? De que há uma evolução da idéia de Deus e do homem, e que esta idéia está vinculada a interesses sociais concretos. A morte (judicialmente imposta) é a sentença contra quem se torna uma ameaça ao status quo, que no contexto, é a maior prioridade para uma nação que ainda está em formação, onde o todo acaba sendo mais importante que o indivíduo. Com o esfacelamento do poder político, a prioridade passa a ser o indivíduo. De uma vida próspera e longa, oferecida à nação por Deus, pela obediência às leis político-religiosas, uma vida eterna é oferecida no lugar. 

Contudo, há uma segunda maneira de se fazer teologia. Respondendo de maneira diversa suas prerrogativas fundamentais. Embora do ponto de vista crítico a teologia passe por uma evolução histórica, há elementos que ao longo dessa história, de uma forma ou de outra, tornaram-se permanentes. Isso acontece porque tais teologias, embora diversas, são produzidas por um mesmo povo. Esses elementos permanentes constituem objeto de interesse da teologia dogmática, e se limitam a elaborar as afirmações de fé de uma comunidade religiosa. Muito da teologia dogmática que produzimos hoje tem sua origem com a cristianização do império romano por Constantino, na formação definitiva do canôn bíblico e dos primeiros concílios da igreja: de que Deus é perfeitamente bom, pessoal, onipresente, onisciente e onipotente. 

É esse o tipo de mentalidade formadora da maioria das comunidades religiosas (cristãs) existentes hoje. Uma mentalidade afirmativa, que anteriormente unida ao Estado, detinha o poder de coação. Sem o Estado, a igreja, diante de um mundo cada vez menos dependente dela e de suas respostas, torna-se a coagida. Sua mentalidade afirmativa não se sustenta por si mesma. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Posfácio de "Absinto"



Confesso!

Sou eu o assassino da atual teologia brasileira. Um assassino de profetas. Querendo matar os falsos, posso atingir também os verdadeiros. Estou cansado de todo o lirismo barato desses mercenários cambistas que outrora viviam ao redor do templo, hoje porem estão dentro dele.

Não há outro meio de provocar uma revolução a não ser com escândalo e perplexidade. Se por outro lado, aquele que se empenha em tal iniciativa fracassa, se vê em meio a tão grave culpa e a equívocos sobre a índole de sua iniciativa que nem o próprio Cristo o tem por inocente. Ele mesmo adverte: Ai do mundo por causa dos escândalos; porque mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vêm! (Mt. 18.7). Todo o contexto do capítulo 18 de Mateus está enraizado na idéia de Jesus em se combater a ideia de superioridade espiritual. Fundamento de uma crítica ao sacerdócio enquanto ofício restrito a uma pequena elite. O escândalo mencionado por Cristo, se refere ao poder de desvirtuar o simples do Caminho, lembrando que ele mesmo provocou escândalos em suas polêmicas com a lei de Moisés e a religião oficial.

Corpo Morto procura refletir sobre o valor de todo o legado deixado pelos mentores da teologia de massa no Brasil, assim como o futuro de tais ministérios após a morte de seus fundadores. Será que a criatura (a instituição) suportaria a ausência da imagem (e todo o poder que ela representa) de seus fundadores? Tal reflexão ambiciona responder uma outra questão: existe afinal uma teologia legitimamente brasileira?

É importante uma teologia brasileira?

Quinto Capítulo de " Absinto"



Uma lembrança:

Espalhou-se a notícia que assassinatos em série estariam comovendo toda a cristandade: eram todos pregadores famosos, donos de vários programas de TV e rádio no Brasil e no resto do mundo. A princípio, acreditou-se tratar de algum ateu furioso evocando justiça contra o comércio religioso movido ás custas do trabalho duro de pessoas simples, sem instrução, que se deixam levar por promessas de curas milagrosas ou enriquecimento fácil, feitas por líderes carismáticos, porém, maldosos. Depois, com a mesma justificativa, pensou tratar-se de de algum fanático religioso, que de tão radical, decidiu por conta própria, extinguir da igreja esses criminosos, se utilizando até mesmo da violência. Uma inconsistência para muitos cristãos, pois ele não saberia estar cometendo um crime também? Afinal,  o joio anda com o trigo, e a violência é inadmissível nos evangelhos. Mas o caso continuou sem qualquer solução definitiva e a cristandade perplexa. 
Pastores começaram a andar armados, e a contratarem seguranças.Outros, preferiram abdicar do sermão público, limitando-se ás mídias. Mesmo assim não paravam de morrer. Houve protestos: alguns, apoiavam as mortes como um castigo de Deus por conta de grandes pecados, outros, outros a censuravam, como um ataque do diabo, mas a maioria ficava sem uma uma opinião definitiva. Falecidos, eram idolatrados por seus sucessores, nascendo a mitificação entre o povo. 

Os enterros, sempre longos, cheios de pompa e luxo, atraíam multidões. Um deles, num estádio de futebol, o defunto é posto num caixão de mármore e ouro, com um helicóptero derramando pétalas de rosa sobre ele. Um longo discurso é feito pelo novo bispo. Por fim, o caixão, alçado aos céus, ficará na sede mundial da igreja para visitação restrita, mediante uma oferta. 

Sim, era eu quem o substituía. 

A tensão consistia em saber de que eu poderia ser o próximo. De que a qualquer momento a morte chegaria sem qualquer aviso. De que para o povo eu morreria mártir. Mas o que me interessa o que acha o povo, quando o que se está em jogo é uma morte de verdade! A minha.


Estão matando nossos profetas!

Estão exterminando os homens que não dobraram seus joelhos a Baal.

- Cala a boca mulher! Alguém gritou.

O corpo sumiu.

Com a notícia, uma mulher desmaiou.

Alguns diziam se tratar de um milagre, outros porém, de uma brincadeira de muito mau gosto. Outros ainda, afirmaram se tratar de uma conspiração a fim de fazer o canalha do pastor se passar por um homem bom depois de morto, se é que de fato ele esteja morto de verdade ou apenas em fuga para algum lugar desse planeta onde consiga se passar por anônimo. Talvez o Irã ou a Coréia do Norte. Eu queria mesmo manda-lo para o inferno, mas se for para o Afeganistão ou a faixa de gaza já está de bom tamanho.

O fato é que alguém estava pretendendo encenar uma possível ressurreição. E alguns homens bem intencionados do povo começaram a acreditar nisso.

- Isso prova a santidade desse homem! Alguém da multidão gritou.

- Mas onde está o bendito corpo? Outro questionou.

Realmente o corpo sumiu. E ninguém sabia sequer onde começar a procurar, nem mesmo a polícia.



quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ressurreição

A você, que como eu, se sente decepcionado com os rumos tomados pelo cristianismo institucional. Que descobriu, que em nome de Cristo, aboliram o cristianismo, e colocaram no lugar uma caricatura, uma pintura, feita apenas para admiração poética ou até mesmo lógica, mas que mantêm a devida distância com o que se passa com as pessoas. Que fizeram do amor ao próximo uma utopia e o substituiram pelo amor ao dinheiro, ao status, fama, poder e hierarquia, quando em Cristo somos feitos irmãos e uma só família. Que descobriu que fizeram da santidade o sacrifício de almas extremamente dedicadas, e que diariamente vivem atormentadas quanto a sua salvação pessoal e ao seu destino eterno. Que fizeram da liderança a sacralização da vassalagem e do dízimo, a preocupação absoluta com os luxos do templo e das excentricidades de líderes religiosos do que a anônima assistência aos pobres.

A você que julgando não ter mais forças para continuar a acreditar em algo assim e que por isso resolveu abandonar tudo. Por julgar que definitivamente tudo está perdido, que o Cristo dos evangelhos tão poético e vivo, morto está em palavras e pedrificado no passado através desses textos que ninguém mais ousa sequer aproximar o ouvido. Que ao morrer, Jesus fora enterrado numa infinidade de dogmas, conceitos e teologias. A você que acredita que esse Cristo de que falam eloquentes pregadores está morto e ainda não viveu na vida das pessoas.

Tomé.

"Sejas Crente e não incrédulo".

Não é o que você vê que deve lhe dizer no que crer. Não é o templo, os dízimos, as teologias. Não é o moralismo dos puristas ou as hierarquias. Nada disso é Jesus Cristo. Sequer isso o representa, pois tudo isso está morto e condenado a não viver. Condená-los não só é racional, como evidente e não há como ser otimista quanto a isso.

" Bem aventurados os que não viram, mas creram".

Creia no que você quer ver. Alimente todas as suas esperanças no futuro, que para Jesus é a ressurreição. A ressurreição de Jesus o separa eternamente de tudo o que está morto, que leva o seu nome ou não. A ressurreição de Jesus é o futuro da ressurreição da criação que está em andamento, alterando as estruturas de poder até a extinção. Isso inclui igrejas, templos, religiões, deuses. Isso inclui seres humanos transformados, novos.

sábado, 3 de novembro de 2012

César e Cristo


* Leituras de Lc. 20.25 e Lc. 23.2.

Jesus, o messias.

Para um judeu religioso isso não constituiria ofensa alguma, a não ser quando esse messias, ao invés de optar pela violência, a fim de impor seu poder, escolhesse seguir justamente o caminho oposto. Um messias pacífico, diante das circunstâncias impostas, não consistia num crime romano, mas judaico, contudo, contra isso, legalmente judeu algum poderia fazer qualquer coisa. A apelação ao direito romano era inútil, pois não existia na alegação de messias um crime em si. O camponês judeu não poderia comparar-se a César. Deixou claro que era o messias e que era rei, mas não desse mundo, não da forma como as coisas estão. Pilatos não poderia condená-lo por isso. 

A acusação estabeleceu numa única fórmula um crime político e outro religioso, satisfazendo assim ambos os lados: um messias que proíbe o tributo a César. Para um judeu devoto toda a nação pertence a Deus, ou seja, César fica com absolutamente nada. Seu poder é ilegítimo, não apenas sobre os judeus, mas também sobre os próprios romanos. Foi isso que os judeus entenderam da clássoca máxima de Jesus: " Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Era isso que muito provavelmente Jesus ensinou de fato. Que diante de Deus todo poder é ilegítimo, tanto que saberia que morreria por isso. 

Nada pertence a César, tudo pertence a Deus. As consequências são assustadoramente poderosas: Deus não é uma entidade abstrata, distante dos homens, ele governa, e diferente dos monarcas ,presidentes e ditadores, ele é próximo e íntimo. Seu governo não é teocrático. Segundo Jesus, é patriarcal. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Corpo Morto


Capítulo I

Uma mesa de necrópse.

Um homem deitado nela.

Era alto, muito branco, aparentando uns trinta anos, de cabelos vermelhos como o ferro  e o corpo coberto de tatuagens.

Essa é a história:

Quando criança, pequeno e franzino, uma das poucas diversões que tinha, consistia em importunar o gato que havia em casa. Inocente, o carregava comigo, tendo minhas duas  mãos presas em seu pescoço, ou então, o puxava pelo rabo, percorrendo a sala junto com outros brinquedos. Quase sempre sozinho.  Não, não se tratava de uma criança perversa, mas sim de alguém que ainda estava aprendendo a descobrir a vida.
Tombei no chão. Ao acordar, observei meu corpo, e parecia que estava dormindo. Eu estava morto. Me desesperei e confuso tentei gritar e chorar com todas as forças, como qualquer criança da minha idade faria, mas não podia. Minha alma havia sido presa no corpo de um gato.

Alguém gritou meu nome, e eu despertei. Estava de volta ao meu corpo, e o gato, bem ao meu lado, era só um cadáver estirado no chão da sala. Consegui chorar e gritar. Minha mãe se aproximou e me abraçou. Nunca mais fui o mesmo. Essa experiência involuntária se tornou freqüente, e com o tempo aprendi a controlar. Certa vez, na escola, troquei de corpo com um colega de classe a fim de colar na prova. Ao retornar ao meu corpo, percebi que ele não acordava. A professora o chamou, alguns alunos também, mas era tarde demais. Como o meu gato, ele também havia morrido. Até então nunca mais tentei realizar tal experiência novamente, até descobrir que poderia tirar melhores vantagens disso.

Agora estou no corpo de uma velha de noventa anos e se eu não voltar ao meu corpo de origem, dentro de pouco tempo eu posso morrer para sempre. O grande problema é justamente o de saber quanto tempo é esse.

Merda!

sábado, 27 de outubro de 2012

O Publicano


Lucas 18. 9-14.

“Tem misericórdia de mim pecador!”

E, contudo, voltará o publicano à sua habitual rotina de cobrador de impostos do império romano. Ele não é amado por isso. Não têm seu nome entre os grandes, mas sim entre os traidores. Ele mesmo se vê como um traidor: de seu povo e principalmente, de seu Deus. Por isso, não tem coragem de erguer os olhos aos céus. 

“Digo-vos que este desceu ju
stificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que a si mesmo se exaltar será humilhado; mas o que a si mesmo se humilhar será exaltado” (v.14).

Sim, no reino de Deus há perdão aos traidores e para todo aquele que abandonou o caminho, pois retornará para ele. E são eles, que pelo ódio alheio não acreditam em si mesmos como justos, santos e bons. Sequer em mudança. Sim, há perdão para ele, que mesmo incerto, deixa o templo e segue o seu caminho sem saber que está justificado.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Resenha de "O Eterno e o Transitório"




Por Márcia Pinho.

Acabei de ler o livro "O Eterno e o Transitório", cujos textos estão encharcados de filosofia e teologia, dois grandes interesses do autor. Tenho eu também um imenso interesse por esses temas. A filosofia e a teologia são irmãs e caminham lado a lado em minha trajetória. Uma me ensina a lidar com o transitório, a outra me prepara para a eternidade. A filosofia me ajuda a entender o mundo em que vivo, a teologia me dá pitadas de compreensão acerca do mundo que me aguarda. A filosofia esclarece um pouco de quem eu sou, a teologia me diz a respeito de quem Ele é.

É neste jogo de paralelos complementares que Diogo Santana escreve sobre coisas comum a todos: perdas, alegrias, amor, solidão; tudo isso tendo como pano de fundo sua identidade espiritual e sua grande paixão pelo oficio de escritor. Questiona-se sobre sua vocação e o sentido da existência, um autêntico idealista. Entre uma reflexão e outra há espaço para resenha de livro, filme e teatro, também analisando a mídia e a literatura. Sua entrega e dedicação ao chamado é evidente, fiquei na dúvida se o autor é devoto por vocação, ou foi vocacionado pela sua devoção.

Além da devoção e da vocação, o senso de “forasteiro na terra” e a busca por sentido são os principais ingredientes do livro, fruto de uma consciência que reflete a totalidade da vida. Seu amor pelas Escrituras está em cada linha e sua paixão pela Cruz é sentida em cada palavra.

Diogo, estou contigo entre O Eterno e o Transitório

domingo, 14 de outubro de 2012

Terceiro Capítulo de "Absinto"



Uma lembrança:

Subindo a escada, Simão estende uma placa na fachada da pequena igreja recém inaugurada: “Igreja Batista em Jardim Esperança: Uma Igreja Homofóbica”.

- Homo o quê pastor? Um dos membros perguntou.

- Homofóbica. Significa que não apoiamos essa tendência das políticas públicas de forçarem as igrejas a abençoarem e realizarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Explicou o pastor.

- Mas nós não somos homofóbicos de verdade. Não lutamos contra os homossexuais, pessoas que Deus ama, mas sim contra o homossexualismo em si e a tentativa de algumas igrejas em legitimar tal prática nas escrituras, o que é de fato absurdo. Conclui um dos diáconos.

- Pois é meu irmão, mas é assim que a lei define pessoas que pensam dessa maneira. Resolvi então apelar para o escracho e o deboche como forma de protesto. Simão justifica.

- Mas fazendo isso o senhor corre o risco de ser preso pastor!

- Eu sei. Tenho o direito a cela especial, uma cama confortável e televisão. Vou comer e beber às custas do Estado, terei tempo de sobra para minhas devocionais, evangelizar outros presos e escrever. Falou Simão ironizando.
Todos começaram a rir, tendo por encerrada a discussão.

No dia seguinte duas viaturas da polícia estavam paradas na porta do templo. Procuram o pastor.

- Pois não, é ele mesmo.
- Recebemos uma denúncia e estamos aqui para averiguar: ou o senhor retira a placa ou seremos obrigados a prendê-lo.

O pastor ergue as mãos juntas.

Recebe um tapa na nuca.

- Tá loco! Replica o policial.

- Você me permitiu uma escolha. Estou fazendo a minha.

Diante da multidão de curiosos e de algumas mulheres chorosas e alguns membros indignados da pequena igrejinha, o investigador, vermelho de raiva, estava inquieto e pensativo. Não queria prender ninguém, mas bem ali, naquele momento, se fazia de Pilatos: ou cumpria o que a lei o exigia ou corria o risco dele mesmo ser afastado de suas funções e até ser preso por insubordinação.
Respira fundo e decide:

- Não vamos prender ninguém.

Todos respiram aliviados e começa uma nova discussão entre o povo.

Mas ele continua e sua voz abaixa novamente os ânimos:

- Não vou prender ninguém, mas vamos ter que fechar o templo.

Calmo, o pastor Simão responde:

- Tudo bem.

Todos ficam perplexos com a calma com que Simão resolve a questão. A polícia vai embora e a multidão se dispersa.

No dia seguinte a congregação se reúne do lado de fora do templo. Uma nova denúncia. Novamente a polícia aparece espera até o fim do culto.

O culto se encerra e logo o pastor é interrogado:

- O que o senhor está fazendo? Ficou louco?

- Fui impedido de realizar meus ofícios dentro do templo. Será que fora também? Vocês podem fechar o templo, mas não a rua.

- O senhor está preso por desacato.

Calado, o pastor é algemado e conduzido até a delegacia. É julgado e condenado a um ano de reclusão.

Subindo a escada, o diácono retira a placa e a substitui por uma outra: “Igreja Batista em Jardim Paraíso: Uma Igreja Inclusiva”. Alguns membros insatisfeitos se desligam, contudo, em apenas seis meses o número de fiéis triplica e o espaço físico do templo aumenta, muitos deles, homossexuais e simpatizantes.

 Os dois se olham e no final do culto conversam. Passam a namorar. Quase dois anos depois noivam, e em pouco tempo estão casados com toda a pompa e as bênçãos da igreja. Passam a lua de mel no exterior. Passam o primeiro, o segundo e terceiro mês. Aparentemente tudo vai bem, embora secretamente algo inquiete o marido, pois fazem meses que não se têm notícia da menstruação da esposa. Pensa se tratar de um problema hormonal passageiro. Ele quer um filho. Ela afirma ser estéril. Mesmo assim, tendo sido todos os problemas esclarecidos, tudo está relativamente bem. Planejam então adotar uma criança.

Certa vez, procurando no armário alguns papéis relevantes para o processo de adoção, entre alguns documentos encontra uma carteira de identidade com o nome inscrito: Carlos Henrique Oliveira, tendo ao seu lado uma foto antiga de um homem moreno e robusto, cujos traços fortes recordam o de sua esposa. A princípio, pensou tratar-se de algum parente dela que desconhecesse, entretanto, o que o documento tão importante de outra pessoa estaria fazendo com ela? Será que ela o estaria traindo? Resolve contratar um detetive particular para segui-la, contudo, cujos esforços foram sem êxito.

Alguns meses passam e um dia, sem hesitar, deitados na cama, antes de dormir, diante dela ele expõe a prova do crime: 

- O que é isso? Fala o marido tranqüilo.
- É um RG. Responde calma a esposa.

Enfurecido o marido berra:

- Sua cínica! O que é isso?

A mulher se desmancha em lágrimas, e soluçando começar a implorar:

- Desculpa. Por favor, desculpa.. Por favor, desculpa...

Ela conta tudo. De que havia nascido homem, mas que com o tempo resolveu ser mulher. Tomou hormônios, retirou todos os pêlos do corpo a laser. Deixou crescer os cabelos castanhos e passou a se vestir como uma jovem mulher ao redor dos vinte anos. Com o apoio dos pais, se tornou cabeleireira, juntou algum dinheiro, fez implante de silicone e realizou  a cirurgia de mudança de sexo no exterior. Mudou de nome, assim como alterou todos os documentos. Para quem olhasse, não havia dúvidas, era uma mulher!

Contudo, evangelizada, decide visitar a igreja de Jardim esperança. O comovente sermão do pastor impressiona. Passa a freqüentar a igreja com freqüência. Numa dessas oportunidades, diante de um emocionante apelo, se dirige à frente, aceitando a mensagem do evangelho. Terminado o culto, conversa com o pastor à parte. Conta a sua história e o seu novo dilema: como se tornar um homem? O pastor fala um pouco sobre como a bíblia vê a homossexualidade, e lhe aconselha a comportar-se como um eunuco, dedicando-se exclusivamente a Deus.

De fato, o corpo se tornou um problema.  Se parasse de tomar os hormônios, a silhueta feminina se deformaria, aliada ao silicone e as cirurgias, não seria nem homem ou mulher, mas um monstro indefinível. Ganharia aspectos grosseiros, teria vergonha de sair de casa, depressão, morte. Prefere continuar vivendo da mesma maneira. O pastor entende como uma libertação progressiva, e por isso, não se opõe.

O tempo passa, e um novo visitante da congregação lhe chama a atenção. Estando inocente o rapaz, eles se olham, conversam no final do culto, namoram e noivam. O pastor se interpôs:

- Ou você realiza o nosso casamento, ou então eu o processo.

Contrariado, o pastor faz a cerimônia.

Um filme passa na cabeça do esposo. Longos e profundos beijos, declarações públicas de amor, a lua de mel.