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Prefácio ao Livro "O Deus de Carne"


Aos crentes em Jesus,
aos irmãos denominacionais,
às lideranças eclesiásticas da cristandade católica, protestante e dissidências contemporâneas do cristianismo,
ao povo: irreligiosos céticos, ateus, indiferentes agnósticos, religiosos ascéticos, de tradição familiar ou por convicção.

Oh Deus, livrai-me do labirinto, de precipitar os pés em direção ao precipício. Eu sinto que morro por dentro, eu sinto que estou perdendo o chão, dá-me as forças para matar o tempo, para fazer uma revolução. Darei meu sangue pela morte do sistema, e se ele me matar, será por mim condenado a forca também. Eu sou veneno, uma lenda, uma contradição.

Caríssimos:


Se eu pudesse, exigiria de mim mais intensidade, um método mais aguçado para pensar, uma linguagem mais rigorosa e edificante de me comunicar, tal como o canto dos poetas, mais horas de doentia devoção a Deus e a minha paixão de escrever: considero-me fraco para tanto, e minha covardia é oriunda da intensa luta contra os apelos da minha própria carne, que por estar em sua solitária exploração da decadente beleza do mundo, é renegada pelos ardentes desejos do meu coração decepcionado, cuja força apenas pulsa contra a terra. Um coração igual ao meu é raro, sendo assim, acabo por não considerar-me um dos mais pios cristãos, muito menos um excelente escritor sobre o cristianismo. Seriedade não me falta, o que me falta é obsessão, fatalidade que me torna incompleto e infinitamente imperfeito diante dos olhares que me observam. Torno-me por conta disso alvo fácil de críticas, por pura distração minha diante da comodidade em ser jovem. Mas os jovens envelhecem e antes que chegasse a envelhecer o corpo, envelheci o coração: minha linguagem metódica, técnica e conceitual é uma prova disso, e acredito que os livros que li tiveram profunda influência em meu prematuro envelhecimento, afinal, eles também envelheceram. Ultrapassei os homens da minha idade em tempo, e por conta disso me condenei a uma incomunicável solidão.

Posso por isso suportar ser vítima de muita coisa, tendo consciência da elevação do meu pequeno coração: riso, chacota, ásperas repreensões, críticas violentas, benevolência e caridade. Eu apenas estou começando a sozinho voar, por isso, lutarei o quanto puder pelas asas que possuo. As vezes me sinto como um recém nascido lançado dentro de uma jaula cheia de leões ferozes, famintos pela minha carne, exatamente porque sei que certos homens jamais suportariam ser ensinados pela sabedoria de uma criança. Mas eu também sou velho, cansado de suportar a soberba de homens que se acham reis, tudo ao meu redor se torna um peso e meu olhar melancólico sobre a realidade, me força a querer acreditar que um dia, submerso na sepultura, eu encontrarei a liberdade. Estou sempre correndo o risco de ser devorado, mas a única coisa que ninguém poderá devorar é o meu coração, um coração cheio de paixão pelo que faço. Como pode caber tanta paixão nesse pequeno coração de carne? Talvez não seja só de carne esse pequeno coração.

Uma espada transpassou o meu peito, e me fez durante certo tempo parar de respirar, sua lâmina separou minha alma do meu corpo. Deus me tirou a vida e me deu uma outra, partindo o meu coração em dois: metade dele um dia cairá na terra e apodrecerá com ela, no entanto a outra, que não pertence mais a terra, será de Deus eternamente. A fé, espada cuja lâmina bem afiada jamais deixará o coração daquele cuja escolha foi a eternidade, é paixão pela eternidade, e todo aquele que se entregar a essa paixão, terá de suportar a dor intensa de viver entre dois mundos que se opõe entre si, cuja guerra, não se estabelece pelo sangue de heróis ou o poder e força dos reis, mas pelo amor e pela ira da divindade encarnada, porque o Deus que nos ama é o mesmo que um dia será o nosso juiz. A fé é uma paixão tão profunda pela eternidade que a medida em que esta se torna mais intensa, é evidente em nós uma profunda distância com essa multidão anônima chamada sociedade, cuja militante contradição, por situar-se na pólis é uma contradição política.

Por outro lado, nos momentos em que a multidão cansada das esperanças frustradas, oriundas da insanidade de homens cujo objetivo é fazer da fé o maior espetáculo, enterra o cristianismo numa sepultura, cujo enterro fúnebre é conduzido por um pequeno grupo de homens que ousa o querer lhe enterrar da forma mais humana, seu corpo morto marginalizado por seus contemporâneos e ignorado por muitos que diziam o amar. Entretanto, contrariando os interesses dessa multidão, é exatamente que emerge o Deus que eles não esperavam, pois somente os homens morrem, mas um Deus jamais, confiando seu legado àqueles cujo destino se filiou pelo amor, cuja força e intensidade visa destituir o homem do altar e colocá-lo no seu devido lugar: a sepultura, para que dela ele possa voltar.

Mas a sátira continua e os nossos artista religiosos insistem com sua forma teatral, pomposa e extremamente banal de cristianismo, inventando uma série de Cristos, cujo valor é exatamente levar a multidão anônima a compreender que Cristo não é tão importante quanto comer, beber, se vestir bem, boa reputação social, e quando não elevada, estável situação financeira. A pluralidade elimina a identidade de tudo inclusive a de Jesus Cristo. O que é a democracia senão a política da pluralidade? Me revolto contra ela exatamente porque sua indiferença a verdade torna todas as coisas destituídas de sentido, os homens, o mundo e até mesmo Deus.

Conduzido por essa orientação reacionária, que evoca tanto a responsabilidade quanto a ação de cada um, no desconhecido lado de minha individualidade, nasceu em meu interior a convicção de que me faltava seriedade suficiente para elevar o meu pensamento às questões que desde o início da minha adolescência me inquietavam sobre a pluralidade de Cristos e igrejas, ritos e hierarquias, era necessário em mim seriedade suficiente para deixar de ser um pagão tradicionalmente cristão, alheio aos compromissos que o cristianismo de fato me envolvia com uma cruz, uma dor, sangue e intenso amor, era necessário uma conversão que excedesse o simples erguer das mãos, que fizesse Jesus Cristo ressuscitar em mim, visto que, com o pecado eu o havia feito no meu coração morrer: e de fato ele ressuscitou.

Por isso, desanimo o ânimo de todo aquele que espera ouvir de mim a história de mais um grande homem, cuja solitária militância ofendeu os seus contemporâneos com a paz, e que nos inspira, com beleza, com imaginação, com poesia, mas também com razão, a colocar os pés, nas marcas deixadas por ele em seu caminho. Irei falar de um homem de guerra, que nasceu para trazer fogo e dissensão, todavia, não com o poder das suas mãos, mas sim, com as palavras de sua boca. É preciso inspirar os homens com a vida de alguém que os ultrapassou, e como tal, se torna, diante de nós, carente de definição: Jesus Cristo é esse homem, pois sempre será visto abaixo ou acima de nossa natureza, de nossa maneira particular e inteiramente subjetiva de nos julgarmos. Tanto para os homens de sua época, quanto para a nossa, Cristo sempre será uma incógnita inserida na cultura, na história, na vida. Ele não pode ser definido, tal como se definem as coisas, não há meios cabíveis para tal empenho, ele sempre será uma pessoa, porque pessoas não se definem. Entretanto, seu legado nos diz muito a seu respeito: os evangelhos foram escritos com sangue, respeitemos a vida que é eternamente emanada deles, inclusive a vida de quem os inspirou. Qual é o homem que pode morrer por uma mentira? Todo homem está disposto a morrer por aquela verdade que os incita a querer viver e morrer. Quantos homens estariam dispostos para tal façanha? É possível contá-los nos dedos das mãos, entre eles estarão aqueles impactados pelas palavras do jovem pregador da Galiléia, estarão homens decididos a seguir e dar continuidade ao seu legado.

É uma evidência: faz parte da natureza íntima da fé cristã se aproximar das crianças. Diante de um regime regulador e autoritário, que era o Judaísmo do primeiro século, cuja decadência promovida pela opressão política estrangeira, exigindo mais opressão ao povo do que às elites, a mensagem de Jesus, juntamente com o seu vivo e perpétuo exemplo, em suas peregrinações, orações, angústias e na cruz, trouxe aos olhos de seus intérpretes, de ontem e hoje, a compreensão de que o amor, contrapondo-se a exigência da lei sustentada pela corrupção e opressão do pobre, significava exatamente a aceitação de todo tipo de excluído, de marginal, diante da decadente teocracia judaica. O reino de Deus é um reino onde todos podem participar: não somente os ricos, os intelectuais, os homens, mas também os pobres, ladrões, prostitutas, conspiradores, adúlteros, indoutos, mulheres e crianças. Jesus é do povo, e isso contribuiu para que seu ensinamento fundamentasse pela raiz o pensamento democrático defendido pela igreja católica e protestante, justificando a sua vinculação política com o novo Estado que estava surgindo. Opondo-se a um regime autoritário, não havia outra maneira de Jesus ser visto e interpretado a não ser como um liberal, herança que chegando aos nossos dias, nossa civilização laureou o cristianismo como o mais fiel representante dos ideais democráticos de liberdade, igualdade e fraternidade para o povo.

O mundo está vazio – de almas!

Jesus veio para enchê-lo.

Diante do abismo, do poço. Eis o salto precipitado da criança em direção ao precipício. Enquanto você dorme um sono profundo, sereno, doce, uma balança está pesando a sua cabeça, tudo se torna sombrio, frio e sem cor diante do maior dos juizes. O mundo é miseravelmente hipócrita, e eu também, enquanto você está apático, sentado no sofá, hipnotizado diante da TV, ou das mulheres, da bebida, dos amigos: morto, decrépito, sucumbido por seus próprios vícios, obstinado pelo prazer oriundo do corpo de uma mulher (- Não percebeu ainda que todo corpo nasce morto? Sendo assim, a vida que você julga ter não pode ser dessa massa fétida que todos os dias está progressivamente se decompondo. A vida excede o corpo, todavia, passa por ele. ), existe gente rindo de você: O que você vai fazer? São exatamente os donos das emissoras de TV, dos bares, dos prostíbulos, as solteironas que procuram um bom partido ( financeiro é claro ) pra casar, a família, a sua nação, o Estado! . Você aguenta isso? Cristo aguentou muito mais, no entanto, o seu legado nos deixou a compreensão de que resistir a cruz, passar por ela, é único meio de destruí-la.

A Cruz é o único legado do homem, ela representa toda a crueldade para com os nossos semelhantes: ela representa os bebês jogados nas latas de lixo, os abortos, os assaltos, os sequestros, os linchamentos, as torturas, ela representa a maneira brutal de como o homem quer se fazer Deus através da violência, crendo que o maior dos poderes do criador é a força. Mas o legado de Cristo é a ressurreição: passar pela cruz, morrer nela, para dela levantar. A grandeza de Deus está exatamente em não ressuscitar vivos, mas mortos, por isso é preciso querer morrer em Deus, para ser por Deus ressuscitado.

É preciso ser ácido, amargo, amar a contradição, saber exceder em ousadia, em paixão. Não sou o tipo de homem que costuma dever as instituições: as instituições mentem, por isso, por precaução, não se deve viver dependente delas por nenhum motivo, de outro modo, fazendo parte do feitio das mesmas certo tipo de canibalismo, elas lhe cobrarão, além de todas as suas forças, sua carne, seu sangue e seu amor também.

Diante da dissenção, oriunda dos conflitos, pelo poder e por dinheiro, mas também por reputação, pela corrupção dos líderes constituídos pelas multidões anônimas da cristandade, que todos os dias exigem um sinal dos céus, uma cura, uma benção, um Deus que se curve ao capricho dos homens e seus empreendimentos, que justificam suas obscenidades, tais como o aborto, o homossexualismo, a luxúria e a avareza, através da acomodação do cristianismo às novas exigências sociais, logo, políticas, econômicas e culturais, fincando suas raízes à terra e arrancando-as do céu, observo pasmo e apático que a palavra não significa mais nada. Banalizado através da pluralidade, o discurso, sistemático ou informal sobre o divino, se tornou vazio e sem sentido definido, visto serem proferidos somente às massas surdas, cuja tradição de apenas frequentar um culto e cumprimentar amigavelmente o reverendo, lhes fornecem a segurança necessária para se rotularem cristãos. É preciso uma reação: não com as mãos dispostas à guerra, mas sim contra o caos e desordem do mundo, através das palavras, que como espadas, nos saltam a boca, com intensa paixão, com crítica, com ação, mas acima de tudo, com salvação.

Tornei-me hermético demais para os meus contemporâneos: um segredo por onde o cristianismo deixava de falar, sendo assim O Deus de Carne nasceu através de uma exigência: falar sobre o cristianismo e a pessoa de seu fundador sem se esvanecer em complexas fórmulas e deduções incompreensíveis, distantes – pelo menos até a medida do possível, me conter a falar a língua dos homens, não a dos anjos, sobre aquele que é o salvador do mundo: tarefa difícil. Eu sou complicado mesmo. Mas era necessário falar, e falar sobre a minha loucura tal como ensinam os pássaros: cantando, e com uma melodia agradável aos ouvidos, do coração, com poesia, paixão, até mesmo um pouco de imaginação, todavia, sem se deixar levar pela força da correnteza. Sou um louco que canta sozinho: o único que me ouve, mas feliz, e ouso com este livrinho escrever sobre a minha insanidade. Todo louco é revolucionário e talvez eu seja também, mas isso só o tempo vai dizer.


Rio de Janeiro, Setembro de 2008.