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Nascer num Ninho de Pata



Os dois amigos se cumprimentaram: sorridentes, apertaram as mãos um do outro. Mostrando-se entusiasmado, Andersen tira sua cartola em sinal de respeito; está contente em visitar o Sr. Kierkegaard depois de um ano e meio esperando o momento certo de pisar em sua casa:

– Este lugar possui algo de sagrado que eu não sei identificar – é a forma que Andersen encontra para saudar o amigo.

O Sr. Kierkegaard carregava um olhar melancólico, típico de um ancião, bem diferente do aspecto jovial que se poderia esperar de um homem de apenas 41 anos. Mesmo assim, não deixou escapar a oportunidade:

– É engraçado, mas não sei se digo “nem eu” ou “você não diria isso se vivesse aqui”...

Risadas tornaram a conversa mais agradável, menos formal, fugindo do que ensina o rígido costume europeu. Soren Kierkegaard odiava a solenidade da vida européia de seu tempo, estava cada vez mais recluso em sua casa em Copenhague, e mesmo assim, usava todas as forças e recursos financeiros que possuía, para atacar, através do jornal O Instante, a esterilidade e indiferença do progresso, da razão e da religião à vida, não daquela que recebemos da natureza ou da sociedade, mas da vida que recebemos de nós mesmos: das contradições e angústias que vivemos todos os dias e que inconfessáveis permanecem no nosso íntimo mudas, e que são de alguma maneira disfarçadas pela hipocrisia das normas sociais. .

Um dos primeiros números de O Instante chegou às mãos de Andersen. O tom irônico, visivelmente sarcástico e crítico contra as convicções ideológicas da burguesia dinamarquesa, chamou a atenção do jovem filho de sapateiro e aprendiz de alfaiate, que queria ser escritor. E Kierkegaard, em meio a uma multidão de inimigos e críticos zombeteiros, ganhou um grande admirador.

Tudo começou com uma pequena carta de Andersen a Kierkegaard (que por descuido do filósofo, já não existe mais), que logo se transformaria numa amizade, que a vida não quis que fosse longa.

A residência dos Kierkegaard sempre foi um lugar de convergência para os intelectuais de Copenhague, em sua maioria teólogos. O pai de Kierkegaard, Sr. Michael Pedersen, embora pouco culto formalmente, era ávido leitor e estudioso voraz em filosofia e teologia. Sua retórica e argumentação não ficava atrás das dos grandes intelectuais de seu país. Sua paixão era a discussão, e, para alimentá-la, uma vez por outra convidava algum doutor ou mestre em teologia para almoçar ou tomar chá em sua casa. O pequeno Soren irá aprender muito com esses debates, irá aprender o poder da palavra:

– Vamos até a varanda, lá podemos conversar melhor. Pedirei à governanta que prepare o café que Peter trouxe pra mim das terras do Brasil.

Ambos subiram uma pequena escada de madeira trabalhada, que dava para uma humilde varanda aparelhada com uma lareira. De lá, longas conversas filosóficas ou reflexões solitárias eram inspiradas pela vista sul da cidade, onde era possível acompanhar o contorno das ruelas e a geometria uniforme das casas, que se estendiam quase até à imensidão das montanhas geladas, cujo branco, quase ofuscante, misturado ao cinza do céu, fazia reluzir os olhos do jovem Andersen, revelando o seu íntimo amor pela natureza, a vida simples e despreocupada, fruto das marcas deixadas por sua passagem, como simples operário, numa fábrica de tabacos. Trecho confuso, também.

O Sr. Kierkegaard se recusava a se deixar impressionar pela beleza exuberante, pela grandiosidade da natureza. Seu olhar permanecia fixo nos contorno das ruelas e na geometria das casas, na agitação das cidades, procurando de forma obsessiva seus males, seus vícios, o grande desespero dos homens, que para ele podia estar ali, bem à frente de seus olhos, em cada esquina, em cada casa, na porta ou até mesmo dentro dos templos.

Andersen sentou-se numa pequena cadeira de balanço feita de palha. À sua frente estava uma mesinha de madeira onde estavam dispostos um exemplar da Bíblia, um hinário já bem antigo, um bloco de anotações e um lápis preto. Kierkegaard preferiu ficar de pé. Em seguida, se dirigiu lentamente até a sacada, respirou fundo e dirigiu o olhar durante alguns minutos para a vastidão das construções, dos prédios, das novas fábricas:

– São todas iguais, meticulosamente iguais!

– O quê?

– As casas. São todas iguais, com exceção do palácio do rei, da prefeitura, das fábricas, do banco e da igreja.

– Interessante, mas aonde você quer chegar com essa observação feita aparentemente do nada?

– Pense nas pessoas que construíram o palácio do rei e a prefeitura, a grandiosidade das fábricas e dos bancos, a suntuosidade e a arquitetura dos templos... Elas não se tornaram reis ou prefeitos, não acordaram de manhã com a notícia de serem fabulosamente ricos, elas não se tornaram, nem sequer viram o rosto de Deus. Construir o palácio não significa que serei seu habitante, tendo que me conformar, pela própria ordem do rei, em morar numa casa apertada, com mais duas, três ou quatro pessoas.

– Evidente, é a ordem do rei, não é? Faz parte da nossa natureza estarmos sujeitos a certas leis naturais, até mesmo as políticas.

– Nossa natureza? Não, olhe para as casas, são iguais porque os homens que as constroem, assim como elas, são iguais, entretanto, não construiriam da mesma maneira se não houvesse alguém que lhes determinasse não só como construir, como também o padrão exigido de construção, de verdade arquitetônica. As pessoas se convenceram de que a verdade, em suas particularidades: política, religiosa, científica, moral, e etc., não está com aquele que simplesmente ordena a construção, pois isso seria motivo de muita insegurança, não está com o Estado simplesmente porque ele exige, ou da Igreja por justificar suas ordenanças como divinas, mas sim com aquele que além de ordenar, ensinam a construir, justificando assim a capacidade de determinar as verdades, as interpretações políticas, morais, físicas, biológicas e religiosas do mundo, através de leis. O maior equívoco de nossa civilização foi desenvolver a crença de que o sentido do mundo vincula-se à subjetividade como um saber que nos fornece segurança interior, tal como uma lei, e por isso mesmo, se tornou viciada em dogmatismos.

A governanta chega com o café e biscoitos amanteigados, o Sr. Kierkegaard pára seu discurso e passa a respirar lentamente. Serve a bebida quente a Andersen numa xícara de chá e depois serve a si mesmo numa outra xícara, também de chá... Entre alguns goles de café, Andersen comenta que era a primeira vez que experimentara tal bebida, e que havia gostado muito, porque diferente do vinho, o seu prazer não inebria, pelo contrário, excita. Nenhum pensador gosta de ter seu pensamento interrompido, principalmente quando ele está sendo dito. O Sr. Kierkegaard não fugia a essa regra, mas era de seu temperamento melancólico esconder essas coisas exatamente para ser a exceção. Ele, a exceção.

– Deixe-me continuar: a verdade se torna um tipo de saber necessário à vida, de quem nós somos, todavia, que nos ultrapassa, que não está em nós e que precisa ser alcançada, o grande perigo dessa crença é que, sendo exterior à vida individual, a verdade não só é negada ao indivíduo como somente pode ser alcançada através da coletividade, administrada pelas normas de conduta civil, pelo trabalho, pelas tradições ancestrais, etc.


– Se entendi bem, o que você quer dizer é que a vida social é uma grande peça de teatro onde representamos bem ou mal, papéis fornecidos pelas instituições e pela cultura, e nos sentimos bem ao vivermos essa vida de mentira, exatamente porque o poder das instituições nos convence a acreditar que somente na coletividade é que a vida é plena de significado, e nos convence exatamente porque as instituições não só nos determinam construir o sentido de nossas vidas através da sociedade, vivendo para ela por ela, como também nos fornecem um padrão específico para tal construção, nos fornecem uma interpretação de mundo e de nós mesmos que não é nossa, mas que consideramos como verdadeiras porque não há em nós nenhuma maneira determinada de conhecimento sobre a verdade.

– Exatamente. Não sabendo a verdade, os homens acabam aceitando tudo que tenha o seu nome.

– Mas isso não significaria que a vida individual é em si mesma ausente de sentido? Isso explicaria o motivo de os homens se apegarem tanto as normas culturais que tornam uniformes todos os seres.

– Não penso a vida como ausente de sentido em si mesma, penso a vida como ausente de qualquer possibilidade de determinação que seja generalizante. A vida, aquilo que de fato somos e experimentamos individualmente, não pode ser reduzida num sistema, seja legal, moral, religioso, e até mesmo físico ou biológico, visto que não conhecemos de fato todos os processos que regulam a natureza, apenas interpretamos, nada mais, e interpretar nada mais significa do que inventar uma resposta provisória, a fim de aliviar a inquietação humana de descobrir o sentido das coisas.

– Como você pensa o sentido da vida então?

O Sr. Kierkegaard deixa sacada e, puxando uma outra cadeira de balanço de palha se aproxima de Andersen. Sentado à frente do amigo que o visitava, pensa um pouco e diz:

– É uma pergunta precipitada, não acha? Acredito que devemos continuar pensando na relação entre o homem, a coletividade e a verdade.

– Se você prefere assim...


Andersen percebe que as xícaras estão novamente vazias, dessa vez é ele quem toma a iniciativa de servir mais alguns goles. Depois de algumas piadas e observações sobre o clima, a conversa retorna ao seu ponto de origem:

– Mas você não acha que os homens preferem viver uma vida inteira de mentira do que não viver vida alguma?

– É exatamente isso que querem que você pense: que sem uma vida de mentira, como encontrar sozinho uma vida de verdade? Se o Estado e as demais instituições não conseguem, como esperar que um único indivíduo o faça. Sendo assim, que mal haveria em sacrificar suas singularidades em troca dos interesses da maioria? Assim os homens morrem por dentro, confiam na coletividade exatamente porque a maioria fala, afirma, dá uma certeza que não se tem, e a singularidade permanece muda com as suas contradições, suas angústias, suas incertezas.

Levantando-se da cadeira, o Sr. Kierkegaard se dirige novamente à sacada e convida o jovem Andersen a acompanhá-lo. Em silêncio durante alguns minutos, os dois voltam seus olhares novamente à geometria das casas e contorno das ruelas. Andersen que outrora havia se impressionado com as montanhas geladas, o céu triste e os vales sombrios da Dinamarca, tão distantes da sua vida quanto da sua visão, vê com simpatia o fascínio do Sr. Kierkegaard e passa a compartilhar com um pouco mais de entusiasmo do seu interesse, todavia, ainda em seu íntimo, não o distingue de uma simples criança que gosta de aprontar travessuras ao olhar donzelas pelo buraco da fechadura.

– Consegue ver alguma coisa de diferente?

– Infelizmente não, é exatamente esse o problema, os homens estão confortavelmente vivendo sem eles mesmos.

Apontoando para o oeste, o Sr. Kierkegaard indica a direção do cemitério municipal:

– O que você consegue ver?

– Uma infinidade de túmulos.

– Mais alguma coisa?

– Que são todos iguais?

– De quem eles são?

– Da distância que estamos, é impossível saber.

– Pois é, a vida não se torna tão diferente assim da morte. Viver para a maioria dos homens é apenas uma forma antecipada de morrer. Todavia, o que mais me incomoda é que depois de enterrado num túmulo, anônimo na morte como foi em vida, os homens são, com todas as honrarias cristãs, dignificados num ato solene, são alçados à categoria de heróis, de mártires, de santos, de bons homens: exatamente porque eles se submeteram ao interesse da sociedade em não serem eles mesmos. O pior disso tudo é que utilizam o discurso cristão como justificativa e instrumento de manipulação da história desses indivíduos, que são impedidos, por um buraco na terra, de se defenderem.

– Explique-se melhor...

– Querem fazer do cristianismo uma doutrina dos mortos, daí sua importâcia numa sociedade como a nossa; daí o fato de o ingresso à igreja, a freqüência dos cultos aos domingos e o aperto de mão do reverendo garantirem, junto com o seu salário, prova do seu empenho no desenvolvimento da coletividade. A fama de bom cidadão recebendo em troca do Estado a possibilidade de um enterro cristão. Você não sabia que todos os oficiais do clero calvinista, aqui na Dinamarca, são pagos pelos cofres públicos?

– Sim, eu já sabia.

– Pois então: pagos pelo Estado, a quem tais oficiais da cristandade devem obediência?

Com um discreto riso do canto direito da boca, Andersen havia começado a entender o que o Sr. Kierkegaard queria dizer:

– Ao Estado certamente.

– Exatamente. O que mais me indigna é que os altares estão cheios de políticos, não de cristãos, o que faz do cristianismo uma doutrina política sem nenhuma sacralidade.

– Mas, pelo que sei, o senhor ainda freqüenta a igreja. Sua indignação não seria um motivo para um rompimento?

– De certo modo sim, eu não preciso mais da igreja, pelo contrário. É ela que agora precisa de mim.

– Não seria muita presunção sua?

– Jamais retornaria à condição dos meus contemporâneos, se eu me conformar em omitir o meu grito contra toda essa hipocrisia, estarei fadado ao mesmo destino que eles.

– Há um pouco de exagero em tudo o que você disse, embora eu não possa censurá-lo por completo. Acredito que hoje o homem possui uma visão mais esclarecida que ontem, graças ao rápido desenvolvimento das ciências e sua exploração da natureza, o que impõe como conseqüência um conhecimento mais definido sobre o seu lugar no mundo, o sentido da vida. Penso que esse sentido somente alcançará a sua plenitude com os homens do futuro, quando o desenvolvimento possibilitará a felicidade de todos, então cabe a nós, homens do presente, contribuirmos com nossos esforços para esse dia, mesmo que precisemos, através da submissão a um Estado regulador, renunciar a um sentido individual para nossas existências. Devemos trabalhar para a felicidade dos homens do futuro, e isso somente será possível se renunciarmos à nossa própria felicidade individual, almejando a felicidade da nação.


Algumas histórias de Andersen haviam chegado aos ouvidos do rei e do futuro regente e angariado na corte grande prestígio e popularidade. O autor de O rouxinol, A pequena sereia e O quebra-Nozes não se atreveria colocar sua recente e bem-sucedida reputação em risco, não se atreveria criticar o Estado. Seu espírito lhe exigia, juntamente com sua condição social ainda humilde, uma conduta pragmática, que lhe rendera alguns amigos poderosos, embora nutrisse em seu íntimo uma certa repulsa a alguns costumes da nobreza.

– Você já leu Hegel? – Kierkegaard pergunta.

– Confesso que tentei, afinal, só se fala nele aqui na Dinamarca. Mas não o compreendi muito bem.

– Entretanto, você conseguiu assimilar muito de sua doutrina para pensar dessa maneira. Hegel pensa no sentido apenas determinado pelas linhas gerais do trabalho coletivo: na produção de conhecimento, de métodos de produção e de organização do trabalho, e na transformação das relações sociais, que para ele era o sinônimo de produzir história. O trabalho coletivo no empenho em desenvolver e transformar o conhecimento, a cultura e o trabalho, alterando os costumes da sociedade, produziria história e essa história produziria um sentido, que ele chama de espírito absoluto, pelos quais os homens estabelecerão dentro de si o sentido individual para as suas existências. Em outras palavras, Hegel pensa num homem que jamais poderá existir sem o seu meio social.

– Concordo plenamente com isso. Acho que você conseguiu traduzir Hegel para mim.

– Pois então você agora compreender que morrerá anônimo como os demais e será esquecido para sempre.

– Não se eu me empenhar em ser um das engrenagens que move a história, não que produz, mas que altera e direciona as novas relações, você não acha?

– Como você pensa em fazer isso?

– Com a minha literatura. Acredito que chamando a atenção do Estado com as minhas histórias posso direcioná-lo a melhorar algumas de suas ações.

– Acho que a crítica exerceria melhor essa função. Além disso, Hegel tem um defeito grave: ele confia demais no tempo. Aprendi pela experiência a desconfiar do poder do tempo. O mundo se desenvolve, as indústrias se expandem, o comércio afirma o seu poder, mas e as pessoas? Continuarão com suas angústias interiores, se perguntando sobre o seu destino quando morrerem, se irão para um céu ou um inferno, ou se simplesmente deixarão de existir e apodrecerão num caixão velho. O progresso deveria trazer felicidade e eliminar do coração do homem suas angústias mais íntimas... por exemplo, a teologia deveria eliminar do coração do homem a dúvida sobre a existência de Deus, sua encarnação, morte e ressurreição, mas por que ela fracassa? Ela também não é uma ciência? Por que os homens continuam duvidando mesmo que não explicitamente? Por que todo esse desenvolvimento não atinge o coração do homem, mas apenas o seu corpo? As pessoas estão vivendo intensamente para o tempo, exatamente porque não possuem certeza se viverão depois dele, sendo assim, a morte acaba sendo o fim absoluto pelo qual os homens escolherão o sentido de suas vidas, produzindo, sendo os melhores pais do mundo, os melhores mestres, os melhores amantes, os melhores religiosos ou revolucionários políticos, em suma, produzindo história, deixando sua marca na sociedade, que na maior parte das vezes, depois de um funeral, não dura muito.

– Talvez essas angústias, como a fé, a morte e o amor não correspondido sejam incógnitas impossíveis de serem resolvidas pelo progresso e pela iluminação das ciências.

– Exatamente, e são essas angústias que são importantes para nós, para o nosso íntimo. Porque o “não” de uma mulher não nos convence de imediato a deixar de amá-la? Todavia, sentimos que, além dela, o mundo inteiro está indiferente a esse amor. O mesmo acontece com a morte e com a fé. O progresso do mundo é indiferente às coisas mais importantes para a nossa existência, que nos fazem viver como nós somos e com toda a intensidade nos dão a ousadia de querer morrer por elas. O mundo é indiferente à verdade.

– Mas o que é a verdade?

– Verdade é todo ideal, que apenas presente no íntimo, move a existência a viver e a morrer por ela. Não sei se fui claro. A verdade é tudo aquilo que move a vida e a preenche de significado; a verdade é a subjetividade. E tal verdade pode ser o amor inconseqüente por uma mulher, uma preocupação sobre o nosso destino eminente ou uma fé. Se você prestar atenção, cada uma dessas verdades possui uma relação diferente com o tempo: o amor a uma mulher faz parte da nossa finitude e não está para além dela, faz parte de uma inquietação quanto ao sentido dessa vida, a preocupação com a morte estabelece uma inquietação quanto à possibilidade de uma vida futura, e se negamos essa possibilidade, fazemos da vida social a estrutura pelo qual se fundamenta o sentido da vida, regulando assim nossa conduta por meio das relações sociais e a fé estabelece uma crença na eternidade, que os nossos clérigos fazem questão de torná-la uma fé puramente imaginária, sem relação alguma com a vida. Em suma, uma verdade estética, uma verdade ética e uma verdade religiosa.

O Sr. Kierkegaard puxa Andersen pelo braço e ambos se retira da sacada e caminham até a mesinha de madeira a fim de tomar mais uma xícara de café. Quando o Sr. Kierkegaard vai oferecer mais café a Andersen percebe que a bebida acabou. A governanta é chamada e sai dali com a incumbência da fazer mais café. Os continuam a conversa, mas os assuntos agora são outros, os dois passam a conversar sobre música, arte e teatro. Animado, Andersen começa a comentar um pouco sobre dança, mas esse é um assunto que o Sr. Kierkegaard não domina e ele se cala. Andersen nota o desinteresse do Sr. Kierkegaard e volta a tratar de algo que fascina a ambos.

– Me fale um pouco mais sobre o seu conceito de verdade.

– Acredito que cheguei cedo demais nesse ponto, não concluí a minha reflexão sobre o modo como vejo o homem e sua relação com o mundo. As pessoas adquiriram o preconceito de que fazer filosofia é o mesmo que determinar respostas, quando, na realidade, é apenas reconhecer o que deve ser perguntado. Afinal, não estamos aqui para fazer perguntas inúteis, não é mesmo?

Andersen receia que o amigo esteja se referindo a ele e pergunta:

– O que você chamaria de uma pergunta inútil?

– Chamaria não, chamo. Uma pergunta cujo contexto não se relaciona com a minha ou com a sua vida, um pergunta que leve a uma resposta, por mais racional que seja, obsoleta. As respostas precisam interagir não só com as perguntas, mas também com aquele que as elabora, somente assim elas passam a fazer sentido. O sentido está vinculado ao que é vivido pelo indivíduo, não se pensa para depois viver, como querem Kant, o próprio Hegel e Descartes. Lembra do “Penso, logo existo”? Diferentemente deles, compreendo que é a vida que determina o pensamento, e essa vida, discordando mais uma vez de Hegel, não se restringe à vida social, ela também a ultrapassa.

– As vezes sua empolgação o torna difícil de ser compreendido. Você já havia mencionado antes que a vida ultrapassa a nossa conduta social, e agora diz que a vida ultrapassa o pensamento, a razão! Em parte poderia concordar com tal afirmação, entretanto, não seria triste demais viver em permanente estado de indeterminação? Não seria como viver no mundo abandonado, sem família, nação ou Deus?

– A vida ultrapassa o pensamento porque a sociedade estabelece suas raízes na racionalização de todas as coisas, inclusive de nossa vida íntima e interior, daquela que não costumamos dizer a ninguém, como os fracassos amorosos de que nos recusamos a esquecer, o medo da morte e a incerteza quanto à existência de Deus. Todavia é essa incerteza que nos faz livres, o que não determina um estado de abandono, mas apenas sua possibilidade. Existem homens que vivem em abandono; outros não. E digo isso sem me restringir à vida social.

– Você está se referindo a Deus, não é?

– Sim, a Deus. Como eu já havia mencionado, as pessoas estão vivendo, produzindo e consumindo, para o tempo, tendo em vista o progresso do corpo social. Kant, Hegel e Descartes viam nisso um modo de se atingir a felicidade. Mas por que as pessoas não são felizes? Por que elas continuam a ter medo da morte? Por que um “não” de uma donzela não é suficiente para deixarmos de amá-la? Por que as pessoas continuam duvidando da existência de Deus, quando esse assunto já deveria ter encontrado uma resposta, um “sim” ou um “não”? Se o sentido da vida humana estivesse plenamente no tempo, os homens já teriam alcançado a felicidade, o progresso e a iluminação das ciências, já teriam realizado o seu objetivo de responder todas as perguntas, e a infelicidade seria apenas ocasionada por um jogo político. São exatamente essas questões que a razão e o tempo não respondem que me inquietam, e penso que o único caminho possível para compreendê-las é abandonar tanto a razão como o tempo como condutores da minha reflexão. É preciso pensar a eternidade com paixão, uma paixão que faz parte do homem, e que, por estar abandonada, é o motivo de inquietações que muitos dos nossos contemporâneos não sabem identificar.

– Nunca tinha pensado a partir desse ponto de vista.

– Todavia, não devemos cometer o equívoco de pensar que o sentido da vida é totalmente transcendente do tempo, isso seria imaginação demais, e só reforçaria a tese de que essa vida é em si mesma ausente de significado. Assim pensam muitos cristãos ascéticos que procuram mortificar a carne com rituais de purgação. Penso a identidade do homem como uma síntese entre o tempo e a eternidade, o homem não é totalmente temporal; caso o fosse a sociedade lhe seria suficiente para lhe fazer feliz. Todavia o homem não é totalmente eterno; caso o fosse, a religião lhe daria a segurança necessária para não depender mais da sociedade, vivendo da imaginação e do etéreo. O homem é uma síntese entre tempo e eternidade, entre liberdade e necessidade, sua identidade deve ser vivida nessas circunstâncias: não só de tempo, não só de necessidade, mas também não só de eternidade, não só de liberdade.

– Mas e Deus?

– Assim como o Estado é o condutor do corpo social através da administração do tempo e dos homens, e essa administração ser impessoal, pela indiferença ao indivíduo, Deus seria o condutor do indivíduo, através da relação com sua eternidade, que é pessoal, sendo assim, Deus também seria um ser pessoal e subjetivo, ele teria um nome.

A noite chega, o café não. É a hora do jantar, ambos se apressam em descer as escadas. Jantam, conversam mais um pouco, dessa vez recusam tomar mais café, optam por uma dose de vinho tinto. Depois, o jovem Andersen é encaminhado cordialmente até a porta. Ao colocar a cartola na cabeça, cumprimenta o amigo e se despede com satisfação, dizendo que a conversa fora muito proveitosa. O Sr. Kierkegaard lhe convida a estar na Igreja de Nossa Senhora no dia seguinte pela manhã às nove, ele passará a noite escrevendo um sermão que será dirigido à congregação, e gostaria que Andersen estivesse lá para ouvi-lo. Embora não sendo religioso, Andersen aceita o convite afirmando ironicamente que estará lá às oito.