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sábado, 25 de maio de 2013

Para Fazer Doer o Coração

A chuva me condena a lembranças tristes.
De que estou irremediavelmente destinado a viver sem a boa companhia,
de quem, com um sorriso, tornaria os meus dias,
um pouco mais suportáveis. Dias um pouco mais saudáveis.
Talvez eu viva menos por isso.

A tristeza vem antes da chuva, e não passa com ela.
Eu me pergunto constantemente se a vida seria um pouco mais tolerável,
se não houvesse essa tristeza.
Talvez não seria.

Mas como saber, sem ao menos ter a oportunidade de conhecê-la?
De fazer doê-la no coração.
Queria fazer doer o coração,
mas não para escrever poemas tristes.
Que o coração doa por intensidade.

É a vida, e talvez eu esteja destinado a fracassar.
Talvez amar não seja assim tão importante,
mas se for, pequeno e insignificante,
poderei até, amargamente chorar no meu túmulo.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Dogmatismo Filosófico




1.      Considerando que todos os filósofos, sejam pequenos ou grandes, reconhecidos ou anônimos, eram seres humanos, e como todos os outros, limitados por sua finitude e ignorância (ninguém ainda conseguiu provar o contrário disso).

2.      Considerando que nenhum filósofo morreu deixando à posteridade um pensamento completo, hermeticamente fechado, que encerra em si todas as grandes e pequenas questões da filosofia.

3.      Considerando que Sócrates, o filósofo grego que explodiu as cabeças da Grécia, apenas o fez a partir da explosão da sua própria cabeça. Que as questões que levantou aos atenienses, levantou antes, para si mesmo. Questões, e não conceitos. Questões são universais, conceitos, particulares.

4.      É ridículo, portanto, a um filósofo, assumir a posição de dogmata, isto é, de adorador de sistemas de pensamento, de escolas, pois nesse caso, não se faz filosofia, mas religião. 

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Loucura e Liberdade




"Em tal mundo, submetido aos efeitos mais teatrais e obrigado a cada entardecer a representar um pôr do sol correto, as pessoas ao meu redor pareciam pobres criaturas dignas de pena pela seriedade com que continuamente se ocupavam, acreditando, ingênuas, naquilo que faziam e sentiam. Havia uma única criatura na cidade que compreendia essas coisas e pela qual eu nutria uma admiração plena de respeito: a louca da cidade. Só ela, em meio a pessoas rígidas e recheada até a ponta dos cabelos de preconceitos e convenções, só ela mantivera a liberdade de gritar e de dançar pela rua quando quisesse. Coberta de imundície, ela andava esfarrapada pelas ruas, desdentada, com o cabelo ruivo desgrenhado, segurando nos braços, com ternura materna, um cofrinho velho cheio de cascas de pão e diversos objetos retirados do lixo.

Exibia o sexo aos transeuntes com um gesto que, se fosse utilizado com outro objetivo, seria considerado “pleno de estilo e elegância”. Que esplêndido, que sublime é ser louco!, dizia para mim mesmo, constatando, com um inimaginável desgosto, quantos costumes familiares arraigados e estúpidos e que esmagadora educação racional me separava da liberdade extrema de uma vida de um louco.

Quem nunca foi tomado por esse sentimento está condenado a jamais sentir a verdadeira amplitude do mundo".

Max  Blecher em “ Acontecimentos na Irrealidade Imediata” (Ed. Cosacnaify/ 2013)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Canibalismo Amoroso




Ele disse que a amava. 

Ela não acreditou. E exigiu, como todas as mulheres, uma prova de amor. 

Ele achou tratar-se de um carro novo, jóias, dinheiro ou viagens pelo mundo. 

Ela queria muito mais do que isso. 

Mais sexo talvez? 

Não. Sangue. O dele. 

- O que?! Enlouqueceu de vez. Não mesmo, sem chance...

Ele não a amava. Era a prova que ela tinha. E insistia nisso. 

Pressionado, ele consente. Faz um pequeno furo no dedo indicado para que ela experimente durante horas seu sangue. Tem gosto metálico e é quente. Com o tempo vicia. Com o tempo ela exige mais com a cara mais angelical do mundo. Inesperadamente lhe arranca um dedo com uma dentada. Ele também, com uma dentada lhe arranca uma parte da orelha esquerda. A noite acaba sendo uma festa, regada a muito sangue, pintando toda a sala de vermelho. Espalhando vísceras. Até que os dois tombam exaustos no chão. E mortos. Ele sem o cérebro, e ela sem o coração.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Destino de Um Escritor Apaixonado


Estava apaixonado.

Contudo, incompreendido, resolve resignar-se em meio a uma infinidade de livros.

Escreve durante horas, ininterruptamente. Pausas momentâneas para lágrimas e choro compulsivo.

Quer esquecer. Ele tenta esquecer. O amor é uma chaga que não sara. Incurável.

Ela resolve amar outro. Como sempre...

Já está acostumado a decepções desse tipo. O impacto não foi tão grande assim.

Mas seu desejo, seu maior desejo, é querer aprender a esquecer. A ignorar completamente o amor. Quer aprender a vencê-lo, a ridicularizá-lo, usando todas as suas forças.

Continua a escrever.

Dúzias de poemas tristes. Confissões de amor interrompidas por acessos de fúria.

Um tiro no coração.

Pronto. Está feito.

Não é amado por ninguém, e isso, agora, não lhe incomoda nem um pouco. 

domingo, 31 de março de 2013

Considerações Sobre o Amor Cristão


O amor é uma exigência divina, contudo, o tratam como exigência humana.

É preciso partir de uma experiência concreta de que o amor, esse espírito de abnegação e cuidado, nos ofereça uma resposta às misérias humanas.  Nossa primeira experiência nesse sentido se estabelece com o cuidado dos nossos pais e queremos que essa experiência se perpetue em todas as nossas relações. Criamos utopias para o amor e por isso ele se torna irrealizável. Essas utopias são construídas quando estendemos nossas experiências infantis de amparo familiar às nossas relações sociais, tendo a expectativa de amparo e cuidado, o que inclui, até, certa disciplina. É inegável certa frustração a essas expectativas.
O amor é uma exigência divina.

Sem meias palavras, sou um cristão e creio em Deus. Contudo, caso de fato ele não exista (e estou sendo meramente especulativo nisso) acredito que Deus represente uma contestação a autonomia de um homem completamente falido. Deus é o indicador de que o homem é um projeto falido, daí as intervenções na natureza, os milagres, a encarnação e ressurreição, conforme destacam a literatura bíblica. Se há um Deus que interfere (teísmo) há um homem que é incapaz de agir por conta própria. Mas para a linguagem científica, não há Deus algum que interfira em alguma coisa: o homem continua livre no espaço.

Para alguns Deus não existe por pura impossibilidade. Essa afirmação torna-se necessária para que o homem utópico que queremos tornar-se possível. O amor é uma exigência divina, e isto significa, mesmo que Deus não exista, que o homem é incapaz de amar. Que o homem é um projeto falido no amor.

Mais ainda: que o amor é impossível ao homem. Que o amor não existe por impossibilidade à natureza humana, que é uma utopia, uma invenção, que pode ser desconstruída historicamente e usado como instrumento de poder por séculos. Para alguns, Deus, que é impossível, se insere nessa categoria. Deus e o amor, impossíveis? Só podem estar num outro mundo, este também impossível.

Se é Deus que exige o amor, e Deus é impossível, o amor torna-se impossível, e da mesma forma, torna-se uma exigência que o homem fracasse amando. Se é o homem que exige o amor, o amor nada implica de divino e impossível. Ele é humano e possível e o homem deixa de ser um fracasso total e afirma sua autonomia. Acredito ser essa uma utopia equivalente a concepção de muitos céticos de que Deus não existe. Podemos apelar e evocar a imagem de indivíduos abnegados como Gandhi, Luther King e Madre Tereza. Todos eles amaram o que convinham amar: os indianos, os negros, os pobres. Isso é algo completamente possível e humano. A luta pelos mais necessitados pode até conceder direitos, mas a concessão de direitos nunca é uma prova de amor. Como se costuma dizer, o amor é uma condição universal, e isso, para muita gente não existe. Porque não existe? Porque o amor universal é um conceito cristão, e o Deus cristão, que ama o mundo inteiro, para a mentalidade contemporânea, simplesmente é impossível.

Contudo, se Deus criou o homem, e o homem é um projeto falido, Deus criou um projeto falido? Um questionamento apelativo. O amor é impossível, tanto para teístas, quando para céticos, cada um ao seu modo. Um, pela ausência de Deus, outro, por causa dele. A confiança que se tem na autonomia confere em mim uma desconfiança, da mesma forma como muitos céticos desconfiam da religião e da crença em Deus. Não, não acredito que o homem pode tudo, de alguma maneira ele sempre se sentirá fraco e impotente, apelando para a religião ou se negando a ela. Negar isso é viver numa mentira! Claro, religiões também conferem suas mentiras, e podem usá-las para explorar e corromper qualquer um. A conclusão é simples: não se pode afirmar que a vida sem religião e alguma fé é melhor que uma vida onde esses elementos estão presentes delas. Não se pode comparar essas realidades como qualitativas. Por outro lado, o abuso de poder, o autoritarismo próprio das instituições, religiosas ou não, não naturalmente passíveis de contestação. Com Deus ou sem ele. 

sábado, 9 de março de 2013

Provocações Filosóficas lll - O Caso " Feliciano"



Houve uma época em que o campo e a cidade representavam valores antagônicos. Esse tipo de antagonismo está presente até mesmo na bíblia. No Brasil isso começou a mudar com a modernização das capitais (do Rio de Janeiro na década de 30 e criação de Brasília, na década de 60). De lá pra cá, o Brasil passa por uma crescente modernização. As cidadezinhas do interior têm acesso a luz, rede de esgoto, televisão e internet. Isso altera e muito a imagem e a mentalidade do homem do campo. Mas esse homem do campo que pensa como o homem da cidade, de maneira que ambos são indicerníveis, tal como são indicerníveis o urbano do rural,  em muitas regiões de Brasil atualmente, não encontram seu maior exemplo na geração de nossos pais, mas sim nos filhos deles. Nossos pais são homens do campo que vivem na cidade. Claro que afirmo isso de forma metafórica para alguns e literal para outros. Analisando a biografia do deputado Marco Feliciano, de origem humilde no interior de São Paulo, e de como transformou sua fé cristã pentencostal  em trampolim político e deste para a presidência da comissão de direitos humanos da câmera dos deputados, é possível, pelo menos em parte, definir como se formou sua mentalidade. Isso não significa justificá-la. Significa compreender como se formou sua mentalidade. O que faz Feliciano objeto de horror para muitos cidadãos brasileiros, incluindo cristãos, se estabelece numa diferença de mentalidade, em tempo e lugar. Pior ainda quando essa diferença torna-se explícita diante de um cargo político, pois as mentalidades, sejam elas quais forem, particularmente de políticos, colaboram para a criação de projetos de leis que se destinam a uma infinidade de outras pessoas. Pelo menos em teoria, não se pode usar a própria mentalidade para a criação de leis: isso é tirania. O embate está ai: uma mentalidade contra a outra, mais do que isso, o que uma mentalidade pode fazer com a outra, já que está no poder, e isto não tem nada a ver com fé religiosa, mas sim com valores culturais engessados pelo literalismo da cultura, da religião, da vida. 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Provocações Filosóficas ll - O Caso " Feliciano"



Historicamente os cristãos constituíram uma minoria. Um grupo irrelevante dentro do Império Romano. Acredito que hoje continuam sendo. Mas porque os cristãos constituíam uma minoria? Porque não se interessavam pelo poder político. Ignoravam o culto aos deuses protetores das cidades, ignoravam os imperadores, ignoravam as leis que buscavam inseri-los dentro da pólis romana como cidadãos. Algo considerado muito estranho na época. O mais estranho é que depois de Constantino, ao invés de fugir do poder, os cristãos passaram a amá-lo. Temem o que a ausência de representação pública lhes custou no passado: perseguição e morte! Dentro do poder, de minoria, os cristãos passaram a ser a grande maioria. De perseguidos a perseguidores. Sim, trata-se de uma vingança histórica. Em nenhum momento planejada pelo seu fundador. O cristianismo politizado é inconciliável com a proposta de amor incondicional, desapego e humildade. Não é cristianismo, porque o cristianismo de verdade, esse sim, continua sendo de uma minoria. Devo lembrar aos cristãos que o conceito cristão de pecado não possui valor jurídico, científico e até mesmo mesmo moral. Sendo assim, pecado não é o mesmo que um crime, uma violação das leis da natureza ou de imoralidade. Quem define o crime é a lei, quem define as leis da natureza é a ciência e o que é moral é definido pela cultura. Inegavelmente não vivemos numa cultura judaico-cristã, sendo assim, o conceito de pecado não pode definir o que é imoral na cultura. As leis jurídicas assim como as demais ciências (principalmente as da natureza e exatas) desprezam qualquer valor objetivo das religiões, sendo assim, pecado não poder ser o mesmo que crime ou um comportamento não-natural. Pecado é um conceito judaico-cristão que não possui nenhuma relação com política, mas sim, conforme salientou Kierkegaard, com nossa consciência de se estar a sós diante de Deus: algo pessoal, intransferível, e que determina a conduta pessoal, os valores pessoais, não coletivos.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Provocações Filosóficas l



No início da minha juventude a filosofia me cativou pelo interesse que eu tinha pela verdade. Acreditava que a filosofia acadêmica contribuiria para uma melhor compreensão do mundo, dos homens, de mim mesmo. Mais do que isso, me ofereceria certezas sobre isso: um grande equívoco. Se a filosofia acadêmica fosse um instrumento de verdade, já mereceria descrédito por ser acadêmica, elitista. Nietzsche criticou bastante isso, e ele não era um filósofo de formação. Mas quantos filósofos de formação contestaram da mesma maneira a prática filosófica universitária? Particularmente não conheço nenhum. A verdade ainda é o grande mito da filosofia. A filosofia não constitui uma doutrina da salvação do homem, ela não permite uma soteriologia. É justamente o contrário: trata-se de uma reflexão sobre até que ponto estamos perdidos. A filosofia não é um instrumento de convencimento. A retórica é. A filosofia não nasceu com fins argumentativos em favor do filósofo ou do que ele defende. A filosofia não defende, ataca. Um argumento nunca é um ataque, é uma defesa. Argumentos não constituem a essência da filosofia, mas sim a dúvida. O filósofo consiste naquele que lança dúvidas sobre argumentos. Contudo, assim como o mais lógico, parte do menos lógico, a dúvida parte de certezas. A filosofia portanto, se desenvolve sobre o chão do senso comum, e em certa medida, não pode se tornar totalmente independente dele. Sendo assim, quando um filósofo parte de um argumento, ele não filosofa, contudo, quando questiona, livre de argumentações dogmáticas, ele é autenticamente um filósofo. Em toda a história da filosofia apenas um único homem consegui tal façanha: Sócrates. É justo o título de pai da filosofia. Platão e Aristóteles, por outro lado, partem de conceitos a fim de conferirem algum valor prático ao pensamento, o que era impossível em Sócrates. E como Platão e Aristóteles, nós filosofamos até hoje. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Capítulo Seis de "Absinto"




Recusaram-se a dizimar, e progressivamente o número de fiéis que freqüentavam regularmente a congregação diminuía. Não houve alternativa para a sobrevivência da igreja, que diante de um mundo cada vez mais aberto ás inovações políticas da democracia a favor do aborto, o casamento civil e até religiosos de pessoas do mesmo sexo, se viu obrigada a aumentar o rigor do seu discurso, se recusando a se adequar aos interesses sociais ou a assumi-los completamente. As opiniões divergiam.

É reconhecido o idealismo dos primeiros, dentre os quais eu fazia parte. Porém sem dinheiro, com o tempo não chegariam muito longe. O segundo grupo, porém, era mais pragmático, e portanto, teriam todo o dinheiro e apoio que quisessem. O grande desafio consistia em adequar a mensagem evangélica aos interesses políticos que vingavam, o que inevitavelmente gerava um estranhamento social compreensível, pois afinal, para muito gente o cristianismo era sinônimo de intolerância. Para essas mesmas pessoas isso não consistia uma questão de opinião, mas de verdade. Quando parte da igreja resolveu assumir um discurso mais liberal, ganhou uma multidão de adeptos, porém, muito desconfiados. Tratavam-se mais de curiosos do que homens de fé efetivamente. Uma justificativa espiritual para suas liberdades os livrariam da culpa provocada por uma herança cultural e religiosa mais conservadora.

Era evidente uma reação do outro lado: evocaram a condenação ao inferno para todo aquele que se recusasse a pagar o dízimo. Uma nova forma de indulgência que garantiria a sobrevivência da ortodoxia evangélica, que por outro lado, teria que se contentar agora com a diminuição dos seus luxos. O inferno. A maioria nem mais acreditava mais nisso. Nem mesmo as crianças, ignorando o que afirmava o discurso religioso oficial como ultrapassado, pois não era científico. Pensei: o que seria científico no cristianismo afinal? Pois nessa categoria não poderia se adequar céu e inferno, a imortalidade da alma e até o próprio Deus. Pensei que se o cristianismo ousa reclamar para si algo de científico ele não sobreviveria.  

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

É Possível Defender o Cristianismo?




“Vê-se agora que extraordinária tolice se comete defendendo o cristianismo, como se trai assim o restrito conhecimento do homem, e com essa tática, ainda que inconsciente, tem, sub-recipticamente, partida ligada com o escândalo, fazendo do cristianismo uma coisa tão lamentável, que por fim é necessário advogar a sua causa para o salvar. Tanto isto é assim que o primeiro inventor na cristandade duma defesa do cristianismo é de fato um outro Judas; também ele trai com um beijo, mas é o beijo da estupidez. Advogar desacredita sempre. Suponhamos alguém que possui um armazém cheio de ouro e que queira dar todos os seus ducados aos pobres – mas se cai ao mesmo tempo na estupidez de começar a sua caridosa empresa com um discurso, demonstrando em três pontos tudo o que ele tem de defensável, nada mais é preciso para que seja posta em dúvida a caridade do seu gesto. Mas então o cristianismo? Declaro incrédulo aquele que o defenda. Se crê, o entusiasmo de suas fé nunca é uma defesa, é sempre um ataque, uma vitória; um crente é um vencedor” (Soren Kierkegaard, em “O Desespero Humano”. Pg.388).



Digamos que você  tenha uma razão – o melhor argumento de todos, talvez de toda a história, que afirme a existência de um Deus bondoso diante de um mundo mau e injusto. Que o seu argumento seja a melhor defesa do cristianismo já inventada desde os escolásticos. Que esse argumento, enfim, traga a paz de espírito necessária aos incrédulos e dúbios na fé. Encontrar a paz de espírito num argumento consiste em pacificar-se ao ponto de entregar-se ao comodismo e estagnação que esse mesmo argumento visa promover, pois convencer é pacificar, e pacificar é alienar. Esse é o interesse de qualquer dogmática, religiosa ou não. De ser no final das contas, instrumento de conservadorismo. De que se o mundo é mau, que ele continue mau, contudo sem um Deus cuja existência torne esse mal injustificável. Contudo, se o problema é justamente o mal, se é ele o injustificável, Deus deixa de ser um problema, até mesmo para ateus, pois se Deus não existe ele não pode ser culpado pelo mal, nem sequer levado em consideração num argumento sério. Pessoas preocupadas com o mal não se interessam por argumentos. Se interessam sim, por ações. De ateus, de cristãos, de qualquer pessoa. Argumentos não podem mudar a realidade, podem sim endossá-la. A melhor defesa de um cristianismo puramente teórico (Teo-lógico) não suporta o choque com a realidade. Não há defesas racionais para o cristianismo. Negar o cristianismo torna-se portanto um exercício de racionalidade, afirmá-lo porém, um compromisso de fé, e isto não significa a aceitação irrefletida de um dogma, mas sim na proposta que o dogma faz à ação. Fé é uma ação e não uma teoria. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Deus Anárquico



Particularmente, tenho uma visão dialética sobre a existência de Deus. Deus existe, mas apenas no mundo em que ele cria. Vejo isso como uma unidade em toda a bíblia, de gêneses ao apocalipse. O gênesis disserta mais sobre a transformação de um povo nômade em sedentário do que sobre o verdadeiro criador do universo e a origem do mal. Essa transição do nomadismo para o sedentarismo não foi fácil, por uma questão muito simples: o Deus hebreu NÃO criou a Pólis. A pólis (a cidade) é uma criação dos deuses. Dentro da Pólis o Deus hebreu simplesmente não existia, ou no mínimo, era um entre os outros deuses. O monoteísmo exige um mundo criado por Deus para que o próprio Deus exista nesse mundo, daí a relutância quanto a sedentarização. Mas esse mundo não é originalmente a Pólis. A sedentarização exige que o mundo de Deus seja a cidade. Que Deus exista na cidade, e que por isso, assuma características políticas e participe de sua lógica. Nasce a teocracia e mais tarde a Idade Média. Nesse período, Deus não é visto como o criador da Pólis, mas como seu soberano, como rei. Essa imagem vai se prolongar durante muito tempo, até a ruína dos governos teocráticos, da teocracia judaica a Idade Média. A teocracia muda de lugar: está nos céus, o Reino de Deus.

Se o Reino de Deus não está mais na Pólis, conseqüentemente, os súditos desse reino tornam-se como no princípio, nômades. Ai está a mensagem de Jesus. Deus não existe no Reino de César. Particularmente não interessam ao cristãos provar que Deus existe no Reino de César. A lógica que movimenta a Pólis exclui um Deus exclusivo e soberano, contudo, aceita uma pluralidade de divindades menores. Diferente do nomadismo original de gêneses, os cristãos não vagam por terras "neutras", por campos abertos, eles se inserem dentro das cidades, até porque campos onde o nomadismo étnico seja possível é praticamente inexistente na época. É preciso ser nômade nas cidades. Não ser da Pólis estando nela. É justamente o estar na Pólis e não ser dela que se estabelece o conflito dos cristãos com o Império Romano. Os cristãos não seguiam a lógica de administração pública. Embora envolva uma questão religiosa (pois os deuses são os criadores da cidade) há também uma questão política, de insujeição, pois se os deuses são os criadores da cidade, são criadores de suas leis e de determinar seus representantes (soberanos). Os cristãos se negavam a prestar culto litúrgico ao Imperador, conseqüentemente aos deuses. Inevitavelmente eram vistos como anárquicos.

Espalhados pelo mundo (nômades) mas inseridos nas cidades, os cristãos fizeram que seu Deus ora assumisse a lógica das cidades, ora, eventualmente, reagisse a elas. No primeiro caso ele se parece com um comunista entre os cristãos comunistas, Judeu entre os cristãos messiânicos, Nazista entre os cristãos alemães da segunda guerra, e etc., adequando-se a paradigmas políticos. No segundo caso, pela sus raridade, destaca-se por questionar qualquer paradigma político para Deus.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Capítulo Sete de Absinto



Havia prometido e hoje cumpriria sua promessa. Decidiu voltar a terra. Como assim entendia, recompensaria os fiéis e puniria os maus. Julgaria a humanidade. Tanto de vivos quanto de mortos, segundo suas ações. Condenaria os pecadores e laurearia os santos com a entrada no paraíso. Sim, eu sabia quem ele era e tudo o que haviam dito a seu respeito. Conhecia as polêmicas que envolverão seu nome, das boas às ruins. Daquelas que mencionam dinheiro, sexo, obediência cega às autoridades religiosas e politicagens, até outras bem diferentes, que falavam da bondade que anônima na história, era feita por gente simples que nunca deixou de evocar seu nome em tudo o que fazia. Gente que se sacrificou por pessoas que simplesmente não conhecia. Que lutaram em seu nome, contra regimes políticos tiranos, que evocaram até o próprio Deus como seus legitimadores. Pessoas que se dedicaram a contestar a miséria de uns e a abundância excessiva de outros.

Jesus voltou, e percebeu que o mundo continuava o mesmo, ou até pior. Não esperava que o mundo mudasse. Não esperava que os homens se tornassem melhores. Sabia que tal como ele, sua doutrina seria ignorada, contraditada, corrompida das mais diversas maneiras ao longo da história. Que sua crucificação ainda continuaria depois dele. De uma outra forma. Jesus voltou e percebeu que não poderia julgar ninguém, ou caso contrário, todos os homens estariam perdidos. Sendo Deus, conhecia tudo o que se passava dentro dessa criatura que apenas agonizava de dor. Que chamavam pecado uma infinidade de carências e que apenas o simples hábito de respirar trazia angústia e sofrimento para muita gente. Era difícil julgar assim.

A liberdade tornou o homem carente de tudo. E quando os homens começaram a acreditar que havia um “tudo”, que superava o medo da natureza e da morte, que havia uma forma adequada de convivência entre os homens, foi inventado o conhecimento e estabelecida a crença de que o conhecimento superava as carências humanas. Ele não superava, apenas a tornava mais evidente. A economia impedia isso. Convencidos de que a morte era a causa da fé em Deus, da moralidade com interesse em recompensa futura, do céu e do inferno, assim como da própria busca de conhecimento, que era em última instância uma luta contra a morte. Venceram a morte, e tudo foi esquecido.

Num segundo, a história da humanidade passou diante dos seus olhos.

Jesus chorou.

Ninguém o conhecia.

Tímido, me aproximei. Reconheci as marcas dos pregos em suas mãos e pés. Brilhava intensamente. Foi emocionante a sensação de conseguir olhar o sol de frente. Aproximei-me um pouco mais:

- Senhor?!

Ele olhou para mim e esboçou um sorriso. Mas os seus olhos estavam marejados e expressavam tristeza. Minha língua travou. Comecei a gaguejar. Respirei fundo para dizer:

- Não fica assim... poderia fazer tudo novamente, não poderia?

Ele olhou novamente para mim e esboçou novamente o mesmo sorriso. Não me disse palavra alguma. Estava preso em seus próprios pensamentos, olhando fixamente o horizonte.

Silenciei. Passei algum tempo ao seu lado sem dizer uma palavra. Pela terceira vez olha pra mim:

- Eu faço novas todas as coisas. Sempre. Começarei tudo novamente. E tentarei todas as vezes em que isso 
for necessário.

Imediatamente a luz que o envolvia desapareceu. Tornou-se novamente um homem comum. Ele sorriu para mim e saiu caminhando, descalço e sem rumo, e eu com lágrimas nos olhos, entendi o que ele pretendia.  

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Deus é Lógico?



Se compararmos com o início das religiões, a lógica é uma produção moderna. Nasceu formalmente com os gregos e possui uma história de adaptações. Tornou- se ao longo desse tempo, e a através dessas adaptações, a chave hermenêutica da modernidade e conseqüentemente do homem tal como o conhecemos hoje. Se Deus é uma produção cultural, a lógica também é. Inevitavelmente o homem moderno não tem como escapar de interpretar o mundo dessa maneira. A mesma lógica que afirma a inexistência de Deus justamente por ser uma produção da cultura. Isso invalida tanto Deus quanto a lógica que o nega como instrumentos de verdades. Caímos no agnosticismo. Algo muito difícil e muito mais interessante para se trabalhar em ciência da religião é justamente tentar entender a chave hermenêutica que permeia as sociedades religiosas onde “Deus”(independente da cultura) representava a “verdade”. Mais interessante ainda é entender como isso se manifesta nas religiões monoteístas. Em suma, é tentar entender o conceito “Deus” a partir de sua própria lógica.

Nossa sociedade moderna foi construída a partir de uma lógica que nós mesmos inventamos. Nessa lógica não há espaço para um Deus, objetivamente falando. Sendo assim é sensato afirmar que Deus não existe nesse mundo que criamos. Fora desse mundo, qualquer coisa pode existir. Até Deus! Justamente porque o mundo existe antes da lógica, antes das religiões, antes do homem. Antes do homem que apenas pode interpretar o mundo através do próprio homem.

Muitos ateus de internet são entediantes porque tentam comparar uma mentalidade religiosa com uma mentalidade científica. Tentam comparar uma lógica com outra (isso se pudermos falar numa lógica religiosa). O mundo é uma cobra que vive trocando de peles. Outros pensadores são mais interessantes porque tentar avaliar a mentalidade religiosa a partir delas mesmas. Dois exemplos simples: Max Weber com sua “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” e “A Essência do Cristianismo” de ludwig feuerbach.

Defender uma lógica inata (e mais ainda, que é possível conhecer essa lógica) é defender um paradigma pelo qual se encerra o mundo. Se uma pessoa assim é não é religiosa, acaba defendendo a atual status quo (ou pelo menos a sua forma mais atual, por onde se predomina o direito às liberdades e etc). Se uma pessoa assim é religiosa acaba por ter que conciliar a idéia de um Deus (predominantemente pessoal) com um mundo cada vez mais tecnocrata e onde às liberdades individuais são progressivamente ampliadas. Acaba tornando-se insustentável. Deus é lógico? Acho que não(alguns defenderiam alguma lógica pra Deus, pois assim ele assumiria uma identidade definida e não cairia numa pluralidade de deidades como poderia supor alguns), mas afinal, também não acredito em nada que seja objetivamente lógico também. 


O lógico será um defensor do status quo. De maneira que o mais lógico será aquele que mais se adéqua aos valores culturais predominantes. O nazismo, o fascismo e o comunismo investiram pesado em propaganda. A propaganda enquanto instrumento para a transmissão de ideologia, forma uma massa não pensante de reprodutores, cuja intenção é torna a ideologia cada vez mais convincente. Cada vez mais lógica.
Vivemos no melhor dos mundos? Se não, como defendia Voltaire, não há status quo defensável. Não há uma lógica universalmente consistente. O caso de Kant com sua “Crítica da Razão Pura” e Hegel com sua “Fenomenologia do Espírito” expressam o espírito de uma época, mas não a antecedem concretamente. O reconhecimento que tiveram em vida é uma prova disso.

Contudo, o mais lógico sempre parte do menos lógico. Enquanto os mais lógicos expressam o espírito da época que se vive, os menos lógicos são de duas categorias: os que defendem o espírito de uma época que já passou, superada portanto (saudosistas) e os que defendem os espírito de uma época que ainda não veio. São, portanto, utópicos e gênios. A genialidade se corresponde com a utopia. Desse tipo, destacam-se Nietzsche, Shopenhauer e Kierkegaard.

Contudo, cabe ressaltar que esses autores tornaram-se os gênios do nosso tempo. Do nosso status quo, que se caracteriza em defender o indefensável. É lógico onde não há lógica. Baumen deu um passo a frente em sua época (a nossa), assim como Kant e Hegel, afirmando a “liquidez” de todos os valores e identidades. Embora importante, não foi genial. O gênio tende a cortar o progresso de um tempo e iniciar outro. E para isso ele não pode ser compreendido. Pelo contrário, precisa ser contraditado e ignorado. Até ridicularizado. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Permite o Cristianismo uma Teocracia?


Querem a presidência da república!

Fazer do Estado, igreja e do presidente, pastor.

Nesse caso, não se trata apenas de moralização, mas de doutrinação político-religiosa. Fez o mesmo Constantino com o seu Império, que de uma forma ou de outra, subsiste até hoje. Nesse caso, estão inseridas a educação religiosa nas escolas, a proibição do aborto, a proibição da legalização da prostituição e o acesso a leis trabalhistas às profissionais do sexo, assim como, alguns aspectos da PL 122 vinculados a liberdade de expressão. Interesses cuja autoridade é legitimada na constituição pela liberdade de consciência e religião. Mais ainda: na bíblia. Bem próximo dos ideais da reforma. Próximo, mas nem tanto. A reforma protestante era essencialmente religiosa, que por conta da união entre igreja e Estado, tornou-se reforma política também. Contudo, com a hipotética separação entre igreja e Estado, a bíblia não poder ser utilizada como instrumento de legitimação política.

Acontece que por ela mesma, particularmente o Novo Testamento, não se justificam atitudes desse tipo. Os cristãos do primeiro século não estava interessados em mudar o status quo, principalmente na sociedade romana. Havia uma apreensão quando ao retorno de Cristo que tornava desnecessário qualquer mudança nas estruturas sociais. Não se tinha tudo em comum a fim de se alterar as estruturas sociais, mas sim por uma questão de coesão social (logo de sobrevivência) entre os excluídos. Nesse sentido, não há nada de utópico no cristianismo.

Os cristãos se mantinham autônomos da sociedade romana durante muito tempo. Eles evitavam a própria inclusão, pois se negavam ao culto ao imperador e aos deuses protetores das cidades. É por isso que os cristãos constituem em princípio uma minoria ignorada, e posteriormente perseguida pela Império. Os cristãos ignoravam o Império.

Seguindo o exemplo desses cristãos, acredito que a autonomia entre os poderes – igreja e Estado - deve ser mantida. Que o Estado legalize o aborto, a prostituição, a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Que os cristãos continuem a ser quem são, ortodoxos ou não. É claro que não se pode viver em paz com isso. Cristãos poderão ser presos por defender ideologias onde estejam inseridos valores mais conservadores. Acredito que este seja o medo de uma parte desses cristãos, os mais honestos, afirmo. Que a história novamente torne a se repetir. Por outro lado, em nossa raiz cristã- americana, está o proselitismo. Inevitavelmente a militância que torna valores pessoais em coletivos. Isto sim precisa ser combatido.
Em resumo, não me importo com um Estado laico. Não me importa lutar por ele, como alguns cristãos mais liberais tentam fazer. Importa-me que o cristianismo esteja longe do jogo político, que ele seja despolitizado. Talvez, a partir daí nos encontraremos novamente como sua essência mais reveladora. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Apócrifo l


Não. Eu não acredito na bondade humana. 

O desejo por poder, status, qualquer e mínima forma de reconhecimento, ás vezes por nada, atestam o que afirmo. Gestos de bondade, que não sejam anônimos, são por mim desconfiados.

Não. Eu não acredito na bondade humana. 

O prazer ao dinheiro. De ter tudo o que vier aos olhos é compartilhado por todos os homens. Ganância. 

A raça humana faliu!

E nisto incluo, homens e mulheres, heteros e homo, letrados e ignorantes, religiosos e ateus. Defender qualquer tipo de superioridade entre gêneros (homens superiores a mulheres e mulheres a homens, heteros superiores a homos, e homo a heteros, religiosos superiores a ateus e ateus a religiosos) é no mínimo defender algum tipo de elitismo que ultrapassa a condição normativa: é uma mentira evidente!

Não tenho uma solução para isso. Nenhum ser humano tem. Acredito no Cristianismo por me exigir (de uma forma auto-imposta) a acreditar em algo que não acredito. Que a humanidade tem esperança. O que desejo profundamente, ás vezes mais, ás vezes menos, é a solidão. As pessoas estão se tornando progressivamente mais dogmáticas. Quero ficar longe delas. Quero ficar longe disso. Ás vezes mais, ás vezes menos. Sei que isso não é possível. Por ora, tento conviver com isso, até o mínimo possível.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Vivemos Numa Sociedade Judaico-Cristã?

http://g1.globo.com/globo-news/milenio/videos/t/programas/v/adin-steinsaltz-fala-da-importancia-do-questionamento-da-realidade/2372945/



" O que está acontecendo no mundo de hoje, de maneira geral, é que ele não é judaico-cristão. O que vivemos não é um ambiente judaico, não é um ambiente cristão, nem mesmo - sejamos sinceros - um ambiente mulçumano. Nós estamos vivendo uma grande paganização do mundo (...) Antigamente havia um deus chamado Baal. Ele é mencionado no Novo Testamento, e a tradição hebraica o identifica como Mamon, dinheiro. Veja esse grande deus. Ele não é maior do que qualquer santo de qualquer igreja? Veja a deusa. Na linguagem antiga ela era chamada de Astarte.É vênus. O sexo, o sexo libidinoso. As vezes, vemos coisas usadas apenas para seduzir.Mas ela não está se tornando muito maior do que todas as Marias?" (Adin Steinsaltz)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Carta a Um Jovem Budista



Amigo,

Assumir em minha identidade o título de “cristão” consiste em sustentar aos olhos de muitas pessoas uma história. Para alguns, idealista e poética, para outros, materialista e maléfica. Aqui reside toda a ambigüidade que o termo socialmente indica, o que para mim é perfeitamente compreensível.

O cristianismo possui uma história, e conhecê-la é de certo modo reveladora. Nesse aspecto, o tempo no seminário, aliado a um permanente questionamento da minha fé, tornaram-se muito frutíferos.  A natureza da história do cristianismo nos convida a entender que nada ou muito pouco dos ideais propostos por Jesus correspondem hoje ao que entendemos como cristianismo. Que a bíblia sofreu uma série de adulterações textuais, sem falar nos problemas inatos do texto devido a sua antiguidade e dificuldade de transmissão ao longo da história. Que por toda essa dificuldade torna-se impossível hoje compreender o que Jesus de fato fez e ensinou. Isso parece bem desanimador. Por outro lado, consiste numa das primeiras descobertas que um estudante de teologia faz num bom seminário. O choque é inevitável. Todavia, essas mesmas descobertas não foram feitas por pessoas alheias a religião, particularmente ao cristianismo. Adaptações e revisões foram feitas diante dessa nova realidade. É inegável que o cristianismo vem sofrendo uma série de adaptações e revisões desde sua origem. Essa transformação chamamos de cristandade.

A cristandade não é o cristianismo. Minha intenção com esta carta é propor uma reflexão sobre essa diferença, até mesmo oposição entre elas e como particularmente entendo o cristianismo e sua interferência em minha ética pessoal. Falarei pouco sobre o budismo: a questão aqui não consiste em justificar motivos pelos quais não sou budista, mas sim, porque sou cristão.

A cristandade consiste na transformação do cristianismo em instrumento de dominação política, econômica, social e moral, ou seja, consiste em fazer do cristianismo um instrumento de poder. Quando isso aconteceu, o cristianismo foi reduzido a uma dogmática que atendia aos interesses do império romano, seu conceito de verdade tornou-se idealista e unilateral. A justificativa para isso estava na formação de um canôn, uma coleção de livros sagrados, e posteriormente numa hierarquia religiosa.

O que é a bíblia? A resposta a essa pergunta definiu a forma de interpretá-la como um todo. Foi a cristandade a responsável em concebê-la, e os textos que a compõe, particularmente o Novo Testamento, foram escritos para comunidades culturalmente tão diferentes entre si, a fim de resolver problemas específicos nessas comunidades, envolvendo questões morais ou a própria fé em Jesus como messias, que seus escritores sequer tinham a intenção de escreverem um tratado universal para os cristãos de todos os tempos. Os textos são situacionais. A idéia de reunir esses textos culturalmente díspares trouxe sérios problemas, seja entre as comunidades de onde esses textos vieram, seja para a formulação de uma dogmática, ou seja, de uma doutrina oficial (e política) do que seria o cristianismo de Jesus.

Para que você tenha uma idéia: Jesus é o messias. Disso todos os evangelistas concordam. Mas cada um possui uma idéia diferente de messias: rei de Israel (Mateus), o cordeiro de Deus que pagaria pelos pecados do povo (Marcos), o “filho do homem”, o messias tal como descrito pelo profeta Daniel (Lucas) ou o próprio Deus em pessoa (João). A teologia nasceu a fim de resolver esse problema. Os teólogos eram em sua maioria antigos filósofos “convertidos” ao cristianismo do imperador, que eram pagos para que de alguma maneira harmonizassem esses textos tão diferentes entre si. Eles se utilizaram da filosofia grega para isso. O cristianismo passa por um refinamento intelectual (pois antes, tratava-se de uma religião minoritária destinada a párias sociais) e sob a tutela da teologia e do imperador ganha status social.

Muita coisa do que compreendemos como cristianismo e sua visão de Deus nasceu nesse período: O Deus simultaneamente onipotente, onipresente e onisciente, a trindade, o sacrifício expiatório e etc. O império se torna cristão, a teologia, que justifica o poder do imperador torna-se a mãe de todas as ciências e a bíblia, torna-se a palavra literal de Deus. Particularmente compreendo que debater essas questões como se fossem inatas ao cristianismo é tolice. A bíblia é a palavra literal de Deus e a interpretação dos teólogos é a correta interpretação dessa palavra. Contestar essa interpretação não era considerado o mesmo que contestar os teólogos ou o imperador. Era o mesmo que contestar Deus.

A cristandade nasceu como simbiose da cultura Greco-romana e do cristianismo transformado em instrumento de dominação política. A cristandade marcou o início da civilização ocidental, inserindo na cultura um calendário “cristão”, uma legislação civil “cristã” e etc. Qualquer outro tipo de poder, estranho ao poder dominante, era facilmente reprimido: surgem as cruzadas, inquisição e uma série de guerras religiosas. A reforma protestante mudou um pouco, mas não completamente essa situação: a bíblia, do latim foi traduzida para a língua do povo. A autoridade sobre a bíblia fora destituída de uma elite. Acontece que a maior parte da população na Alemanha, na época era analfabeta e muito pobre. Uma bíblia era muita cara. Os primeiros beneficiários dessa iniciativa da reforma foram os nobres e os intelectuais insatisfeitos com o poder da igreja, e que por isso apoiavam Lutero. A bíblia passa a ser lida entre esses primeiros partidários da reforma (eruditos) não como palavra literal de Deus, mas como literatura e com interesse científico. Muitas descobertas interessantes partem daí: incoerências textuais, cronológicas e históricas tornam-se evidentes. O valor espiritual da bíblia estaria fora dessas questões.

Surge uma segunda escola da interpretação bíblica, oposta ao ortodoxismo. Chamava-se liberalismo. Essa corrente se caracteriza pelo estudo crítico do texto bíblico, sem desmerecer seu valor espiritual que é reduzido a uma moral. Para um liberal, a bíblia não é literalmente a palavra de Deus, mas sim o testemunho ou o registro, totalmente humano, da experiência que um povo ou indivíduos tiveram com o sagrado. Para um liberal, a experiência com o sagrado é mediada por pessoas inseridas numa cultura específica, sendo assim, é a cultura (com seus conceitos e pré-conceitos) quem vai oferecer uma forma específica à experiência religiosa, que é universal. Sendo assim, os livros sagrados de outras tradições religiosas são tão inspirados divinamente quanto a bíblia, apenas situam-se em culturas diferentes. Para um liberal, a bíblia consiste num tratado de moral e Jesus é um professor de moral. Todos os milagres são alegorias destinadas a transmitir valores morais.

A tarefa de um teólogo liberal (que não presta mais serviços a um império, mas à ciência) consiste em reinterpretar esses mitos, tendo como referência a cultura de onde vieram, traduzindo aos homens de hoje seu valor moral universal.

Contudo, o liberalismo ainda constitui a cristandade, aliada a revolução científica e a promoção das liberdades individuais. O protestantismo liberal e progressista sempre esteve vinculado ao poder político, particularmente na Inglaterra. Houve uma reação a isso: grupos que ficaram conhecidos como pietistas ou separatistas, que defendiam a separação entre igreja e Estado, bem como uma “purificação” moral da igreja. No início foram duramente perseguidos, em seguida, enviados às treze colônias americanas, junto com uma infinidade de criminosos, a fim de colonizar as novas terras sem interferirem nos interesses do Estado Inglês. Na América eles ficaram conhecidos como puritanos.

O puritanismo se caracteriza por restabelecer o ortodoxismo teológico no âmbito privado, da consciência. Isso de deve ao conceito de pecado ser a principal temática na época para sermões e na teologia. Fruto de uma interpretação dos tempos que se estavam vivendo como ações de um Deus punitivo: epidemias, fome e doenças contagiosas devastaram a Europa. Os impactos psicológicos dessas experiências, foram transmitidas às gerações, principalmente na religiosidade. Que chegou à América. Tal perspectiva era ignorada pelo protestantismo luterano. Essa influência deve-se principalmente à Calvino.

Calvino, tal como os teólogos católicos, fazia do pecado um conceito jurídico (ele era advogado por formação, não teólogo). Sendo assim, o pecado representava uma inconformidade a certos padrões legais divinos. Nessas condições não havia como evitar o moralismo. Lutero compreendia a questão de forma bem mais amena: o pecado não consiste numa questão jurídica, do ato, mas existencial, do sujeito, inerente à condição humana. Contudo, isso não representaria a perdição absoluta. Pela fé Cristo torna-se o tutor do pecador, mas o pecador não deixa de ser quem é. Não há moralismo em Lutero.

Acontece que, sem levar em conta ás missões católicas presentes desde o descobrimento (fruto da contra-reforma), nós brasileiros fomos “evangelizados” por puritanos. A visão que temos do cristianismo é oriunda deles. O proselitismo torna-se uma outra questão nesse processo. Entre os puritanos a salvação não é pessoal, mas coletiva. A salvação do indivíduo depende da salvação do grupo, mediada pelo moralismo. O puritanismo é fundamentalmente imperialista. A salvação coletiva está fortemente vinculada a interferência da religião na vigilância da moral pública, isto significa, interdições ao interesse do Estado a legalização do aborto, prostituição, uso legal das drogas, casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e etc. Para que essa interferência seja feita, horários na TV aberta são comprados para doutrinação moral, assim como, torna-se comum a participação de religiosos na política.

Mais uma vez insisto: isso em nada se parece com o cristianismo. Pelo contrário, é sua oposição. Para algumas pessoas o cristianismo está tão diluído na cristandade que torna-se impossível uma distinção. Para algumas pessoas os ensinamentos de Jesus estão tão sedimentado em outras tradições sintetizadas na bíblia que sua doutrina é considerada perdida para sempre. Até onde se sabe, Jesus não escreveu nada, e é muito provável que não tenha deixado nada escrito. Depois de sua passagem pela historia, a partir do segundo século, surgiram inúmeros movimentos, que embora muito diferentes entre si, definiam-se como seguidores de Jesus.

Além do mais, o problema “O Que é o Cristianismo?” não é novo, já era pré-existente no primeiro século de nossa era, isso porque nem mesmos os discípulos sabiam quem de fato Jesus era. É justamente desse problema que São Paulo trata em sua teologia. O cristianismo não se trata efetivamente num conjunto de dogmas. Não se trata na fé em conceitos. O cristianismo consiste na fé numa pessoa, Jesus Cristo. E mais ainda: que essa pessoa, diferente de todas as outras, venceu a morte. Esse é um ponto tão central dentro do Novo Testamento que todos os relatos, embora divergentes em vários pontos, concordam na realidade da ressurreição literal de Jesus.

Duas colocações são necessárias sobre esse assunto: sabemos que a religião responde a certas necessidades. Que a ressurreição, por ser tão importante para os cristãos, responde ao problema irremediável da morte. O grande problema para o cristianismo não é a existência de Deus, ou do pecado, do céu ou do inferno. É a morte! Um problema concreto. A eternidade da alma, particularmente sugere não a fuga de uma vida à outra, mas sim de que a vida é tão boa que não precisa acabar. A mesma vida. Que a felicidade não está além, mas no aquém, pois existir representa essa felicidade. A grande vantagem da eternidade é a duração. Outra coisa bem diferente da vida, consiste nas circunstâncias em que essa vida está situada: cultura, religião, economia, família e etc. Para a maioria dos cristãos, a estrutura pela qual a vida está sendo sustentada não é boa. Pelo contrário, é tão ruim que não mudará para melhor nunca. Que por conta disso o mundo irá de mal a pior. Tanto que, caso exista vida após a morte, não existe estimativa de voltar novamente para esse mundo. É por isso que a grande maioria dos cristãos ocidentais mais ortodoxos não acreditam na reencarnação. Isso respondeu a necessidade psicológica dos cristãos falarem do céu. Onde a vida continua em circunstâncias novas, melhores.

Outra questão importante, é que objetivamente falando, mortos não ressuscitam. Sendo assim, para qualquer pessoa de bom senso, crer na ressurreição de um homem com pelo menos três dias de morto é um absurdo. Para o mundo helênico, antes da cristianização, também. Isso nos permite compreender que antes da institucionalização, nem mesmo uma ideologia o cristianismo representava, quanto mais uma religião. Um movimento de párias, isto sim, que no império representava um número inexpressivo e sem importância significativa. Um movimento destinado à extinção. Se Jesus não ressuscitou, não há nada que justifique a sobrevivência de um grupo assim. Se o corpo foi roubado da tumba pelos apóstolos e depois espalhada a notícia de sua ressurreição, não há nada que justifique o fato de muitos desses mesmos apóstolos terem sido mártires. Afinal, quem morreria consciente por uma mentira?