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sábado, 24 de novembro de 2012

Capítulo Quatro de "Absinto"


Não se pode afirmar quem se é sem qualquer lembrança. Sem lembrança é impossível afirmar coisa alguma: linguagem, cultura, história, identidade. Não há vida para os que não recordam. Não há morte. Eles sequer existem. Fechados sobre si mesmos não conhecem sentimentos como o amor e o ódio, a tristeza ou a alegria. São imunes a qualquer estímulo de comunicação. Tudo é silêncio. 

 Não reconheço ninguém. Ando sem rumo, pela estrada deserta, sem ser visto. Parece não haver comida ou água em parte alguma. Não sinto fome ou sede. Estou confuso. Angustiado. Se eu chorar e gritar, não haverá quem me escute. Sou como um naufrago em alto-mar. Era o inferno. Eu deveria saber. Mas onde está o fogo e os gritos das almas angustiadas que suplicam por misericórdia? Onde está o diabo e seus demônios? Pois agora sei o que é o inferno: a solidão absoluta, e por toda a eternidade estar preso aos próprios pensamentos e sentimentos, sem possibilidade alguma de expressá-los. Havia me tornado um fantasma. 

As máquinas não páram, não dormem, produzindo controle. O fim do trabalho é o próprio trabalho, pois num mundo sem morte o ócio é muito maior. Não há fome, pobreza ou riqueza. Não há a mínima desigualdade. Sem a morte não há a necessidade de recursos, seja de medicamentos, roupas ou dinheiro. Sem dinheiro, não há diferença entre os homens.


Reunidos, pareciam evocar a morte numa espécie de culto religioso.

Honravam a morte como um Deus que havia prometido retorno. Mas nada de velas, preces ou mortificações de qualquer espécie. Afinal, tudo isso seria inútil. Estavam ali reunidos para lembrar. Para tentar lembrar. A lembrança nos concede a dimensão da passagem do tempo. É com a lembrança que envelhecemos. E morremos.

Tudo da forma mais discreta possível. Havia a crença de quando algum deles se lembrar de tudo, a morte retornaria ao mundo, trazendo a ordem natural de todas as coisas. E assim, num ciclo interminável, pouca antes de suas memórias se esvaírem, as deixavam registradas em desenhos quase infantis, pré-históricos. Havia uma pequena inscrição na parede, sem autor identificável, e que ao menos, pudesse ser lida pelos presentes:

“Lembre-se que nunca foi o que é agora, e por esforço não será amanhã o que é hoje. Lembre-se que já foi jovem, para que reconheça que hoje você envelhece e tenha saudade da juventude. Lembre-se disso a todo custo. Escreva o que vier a cabeça. Você esquecerá desse compromisso freqüentemente. Leio-o sempre embora você se esqueça disso também.”

Uma coisa era certa: no dia em que alguém se lembrasse, morreria. E mortos não podem transmitir o que sabem. Lembrar e morrer são esforços que se fazem por conta própria.

Boa Notícia!

Um deles lembrou, e morreu. Justamente o que entre eles era reconhecido como um poeta. Das imagens. Ficou lá, estirado no chão, apodrecendo e exalando mau cheiro. Ninguém sabia o que fazer com ele. O que fazer com um defunto. A carne foi dando lugar a exposição dos ossos e de alguns órgãos internos. Descobriram do que somos feito. Mas se esqueceram disso.

Estava feito. Alguma coisa nova iria acontecer. O relógio do universo estava começando a girar seus ponteiros novamente.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Porque Sou Anarquista e Cristão?






1- Acredito em Deus e na sua completa transcendência. Isso o distingue da objetividade e longe da possibilidade de investigação pelas ciências, da razão instrumental e do uso que de seu conceito fazem as culturas. 


2- Acredito, contudo, como atestam as escrituras, que esse Deus, radicalmente transcendente, se encarnou. 


3- A encarnação não tornou Deus imanente ao mundo natural, pelo contrário, manteve a distância entre criador e criatura, conservando assim ambas as naturezas, dialéticamente unidas.


4- A transcendência encarnada, segundo as escrituras, isto é, Jesus Cristo, constitui essa unidade dialética, onde a eternidade entra no tempo e Deus passa a habitar na história. Contudo, Deus, que é transcendência e por isso eternidade, não se torna totalmente temporal e histórico, logo, Jesus não constitui um simples homem preso a uma cultura e um tempo. Sua mensagem portanto transcende a cultura a que foi dirigida. Ela se dirige a todos os homens. 


5- A transcendência encarnada, conservando sua natureza, é  escândalo ao mundo, se opondo violentamente (totalmente) a ele. "Mundo" segundo o Novo Testamento, pode seguramente ser compreendido como "arquia" ou "instâncias de poder, de governo". O político propriamente dito. 


6- O divino é antagônico ao político. Deus é antagônico ao mundo. Sendo assim, qualquer instância política que se autodenomine divina ou sagrada, constitui uma falsificação. 


7- Como atesta Tiago 4.4: " Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus". 


8- A instituição Cristã, enquanto ordem submissa ao poderes políticos, com hierarquias, disciplinas e outros elementos estranhos ao evangelho, constitui uma falsificação do conceito cristão de ecclésia (assembléia). Jesus Cristo é o criador da Ecclésia, Constantino, o criador da instituição cristã, ambos completamente diferentes entre si. 


9- Tais falsificações são atestadas por diversos autores: a fé (relação pessoal e exclusiva com o sagrado) é substituída pela segurança dos dogmas oferecidos por rígidas teologias e sermões dos clérigos, excluíndo a responsabilidade pessoal de cada indivíduo em responder por conta própria o que é o cristianismo (Kierkegaard). Em moral, o uso da violência é amplamente utilizado por uma instituição que se denomina promotora da paz (Tolstói). Frank Viola se dedica em expor a diferença cultural entre ecclésia e instituição cristã. Jaques Ellul e Vernard Eller, mais conceituais, procuram identificar tanto na tradição religiosa hebraica, como no Novo Testamento, uma mensagem originalmente libertária, em suma, em expor, porque o cristianismo, desde sua formação primitiva como uma seita judaica por Jesus de Nazaré até os dias de hoje, é essencialmente anti-estatal, anti-hierárquica, anti-tributária (coletivista) e anti-institucional. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Deserto


Porque alguns homens insistem em viver nos desertos? 


É evidente uma distância entre eles e os homens comuns. Uma distância perigosa, onde a solidão, a vida austera e o discurso ácido contra os males da civilização substituem a confortável vida em comunidade, a submissão em troca da própria vida (onde o capital se torna uma autoridade que exige obediência) e a ausência de senso crítico. Homens assim jamais serão ouvidos. Sua razão não é adequada ao discurso que predomina e que exige total obediência. Assim é a vida da maioria dos homens. É angustiante a constatação de que embora “povo do livro”, os cristãos são, em sua maioria, paradoxalmente, despreocupados com qualquer tipo de formação intelectual. Justificam a autoridade religiosa a fim de se livrarem do compromisso com o ensino. Lêem pouco, estudam pouco, não se tratando, porém, de uma simples falta de oportunidade. Despreocupados, fazem do pastor (ou padre) alguém que estuda o cristianismo por eles, alguém que é cristão por eles. 



Porque alguns homens insistem em viver nos desertos?



Porque nos desertos não podemos fugir de sermos nós mesmos. De assumirmos riscos e responsabilidades, de sermos livres e por isso inadequados ao mundo. De pagar com sangue por essa liberdade. De prepararmos o caminho do Senhor que é de liberdade. Quando cristãos entenderem que espiritualidade não se trata de uma simples questão de obediência, mas de responsabilidade para assumir riscos, começarão a entender o que é ser um cristão.

O Filho Pródigo






Talvez você considere a parábola do filho pródigo apenas um texto bonito para ser pregado a não crentes ou crentes decepcionados com a igreja num domingo à noite. Não é este o caso. Deus ama seus filhos onde quer que estejam: perto ou longe. Este texto é para ambas as pessoas. À todos os crentes que, independente das circunstâncias se encontraram desencorajados e desestimulados, tristes e aborrecidos, incompreendidos ou simplesmente  se sentem ignorados. Há de se considerar que muita gente assim, com toda a persistência, freqüentam nossas igrejas. Por outro lado, seria um erro grosseiro comparar uma denominação qualquer com a casa do pai, descrita na parábola. Contudo, podemos tornar nossa vida em comunidade integrante dessa casa. Nesse esforço surge a igreja: a comunidade que reproduz à sociedade o amor de Jesus Cristo, que não distingue bom de mal, justo de injusto, que é gratuito. 


A Juventude é Uma Aventura Perigosa. Ele tem tudo em suas mãos, mas seu coração não está satisfeito. Os bens de seu pai são maiores do que a presença de quem lhe amou por toda a vida. É jovem, e por isso, tem no coração o desejo por aventura e perigo. Deseja enfrentar o mundo lá fora com as próprias forças, confiante que irá vencê-lo. Abandona a segurança do lar. Decidiu partir. Indo para longe de quem, por toda vida o sustentou e cuidou. De quem lhe ensinou sobre os perigos que o mundo reserva a jovens simples. Mas sua curiosidade lhe impulsiona à fascinante beleza do desconhecido. Decide partir, e mesmo com toda a angústia da separação, seu pai não se recusa a lhe negar coisa alguma. Oferece tudo. Junto com o filho rebelde e aventureiro, vai-se embora na caminhada parte do coração de seu pai. Como nos mitos gregos, deseja enfrentar seu destino. Seu bondoso pai não estará lá fora para socorrê-lo, mas não deixará a porta de casa até ver seu filho retornar ao lar novamente. Diferente dos gregos, que não eram filhos dos deuses, não podemos deixar de sermos filhos de Deus. Não podemos fugir de nosso lugar de origem. É inevitável que ele retorne para o lar. É inevitável que ele aprenda que no mundo lá fora não há lugar para ele. Lá fora ele não é filho de ninguém e por isso, não haverá piedade para ele. Aprenderá que longe de casa não se pode ir a lugar algum. Ele retornará, mas não como a mesma pessoa de antes.


Voltar ao lar. Tornar a trazer alegria ao coração de um pai que espera. A alegria do reencontro, que evoca a lembrança de quando viu seu filho pela primeira vez, ainda pequenino e indefeso, chorar em seus braços. Novamente para os seus braços ele retorna. 


Essa é a sua história, mas também de outros tantos que como ele se convenceram de que poderiam encontrar algo melhor do que a casa do pai que se dedicou e ofereceu tudo a ele. A história de cada um de nós. A história de nossa viagem rumo ao desconhecido e de nosso retorno para a casa. O mundo é um grande deserto, onde os poucos oásis estão lotados de pessoas que competem entre si (e até matam por isso) por um pouco de água, comida e descanso. Por isso, não espere sobreviver por muito tempo lá fora. No deserto você não é filho, não está indo para lugar nenhum e não tem muito tempo de vida, aliás, não tem muito tempo para descobrir essas coisas. 

O Que é Teologia? (II)




É estupidez oferecer algum crédito a debates desnecessários: Porque Deus permite o mal? Porque Deus permite que crianças inocentes morram de fome na África ou em guerras no Oriente Médio? Somos livres ou predestinados? É a bíblia confiável? E por ai vai. Os questionamentos são infinitos. Contudo, a maior parte deles é oriunda de uma certa confusão mental a respeito da história, método e objetivos de uma boa reflexão teológica. 

Tentarei ser sucinto. A teologia possui como prerrogativa fundamental responder três questões: “Quem é Deus?”, “O Que ele quer de nós?” e “O que nós queremos dele?”. Ela pode se esforçar em responder essas questões de duas maneiras específicas. Uma, crítica, utilizando-se de elementos de várias ciências, como crítica literária, filosofia, história e etc. Nesse sentido a teologia constitui uma ciência como as demais, pois seu interesse limita-se a investigação cultural, histórica e social da forma como os homens compreenderam o sagrado e tentaram de alguma forma defini-lo. Tratando-se da bíblia, um documento importante nessa investigação, a partir da análise crítico-textual, procura-se entender como seus redatores entenderam a partir de épocas distintas a relação de um povo com seu Deus. O que significa também entender como a idéia de Deus foi evoluindo histórica e sociologicamente. 

Nesse sentido, os vários redatores da bíblia não são uníssonos entre si. Um exemplo simples: como pode o mesmo Deus do primeiro testamento, que ordena a morte de pecadores, ser o mesmo do Novo Testamento, que lhes concede o perdão? Uma pergunta que tira o sono de muitos cristãos. Porém tratando-se de crítica textual, fazemos algumas descobertas interessantes sobre isso: 1) Segundo Julius Wellhausen o Pentateuco trata-se de uma construção teológica plural, posteriormente reunida, já tardiamente. Se de fato existe uma contribuição mosaica em sua redação, como atesta a tradição, é mínima, porém nuclear. Há pelo menos três escolas teológicas no Pentateuco: Eloísta, Javista, Sacerdotal e Deuteronomista. Divergências nessas tradições serão inevitáveis. O que acontece é que elas foram reunidas a fim de formarem um único texto, uma única fé e um único povo. 2) Essas teologias evoluem pois expressam a transformação de um povo semi-nômade em sedentários à politicamente organizados. 3) O Pentateuco não fala sobre a vida pós-morte. Sua teologia, é efetivamente da vida cotidiana. Não há, da parte de Deus, promessa de céu ou inferno, mas sim de uma vida próspera e longa. Tanto que os judeus ortodoxos na época de Jesus (saduceus) por terem apenas o Pentateuco como livro de fé religiosa, não acreditavam em vida após a morte. 

O que se conclui a partir de tais fatos? De que há uma evolução da idéia de Deus e do homem, e que esta idéia está vinculada a interesses sociais concretos. A morte (judicialmente imposta) é a sentença contra quem se torna uma ameaça ao status quo, que no contexto, é a maior prioridade para uma nação que ainda está em formação, onde o todo acaba sendo mais importante que o indivíduo. Com o esfacelamento do poder político, a prioridade passa a ser o indivíduo. De uma vida próspera e longa, oferecida à nação por Deus, pela obediência às leis político-religiosas, uma vida eterna é oferecida no lugar. 

Contudo, há uma segunda maneira de se fazer teologia. Respondendo de maneira diversa suas prerrogativas fundamentais. Embora do ponto de vista crítico a teologia passe por uma evolução histórica, há elementos que ao longo dessa história, de uma forma ou de outra, tornaram-se permanentes. Isso acontece porque tais teologias, embora diversas, são produzidas por um mesmo povo. Esses elementos permanentes constituem objeto de interesse da teologia dogmática, e se limitam a elaborar as afirmações de fé de uma comunidade religiosa. Muito da teologia dogmática que produzimos hoje tem sua origem com a cristianização do império romano por Constantino, na formação definitiva do canôn bíblico e dos primeiros concílios da igreja: de que Deus é perfeitamente bom, pessoal, onipresente, onisciente e onipotente. 

É esse o tipo de mentalidade formadora da maioria das comunidades religiosas (cristãs) existentes hoje. Uma mentalidade afirmativa, que anteriormente unida ao Estado, detinha o poder de coação. Sem o Estado, a igreja, diante de um mundo cada vez menos dependente dela e de suas respostas, torna-se a coagida. Sua mentalidade afirmativa não se sustenta por si mesma. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Posfácio de "Absinto"



Confesso!

Sou eu o assassino da atual teologia brasileira. Um assassino de profetas. Querendo matar os falsos, posso atingir também os verdadeiros. Estou cansado de todo o lirismo barato desses mercenários cambistas que outrora viviam ao redor do templo, hoje porem estão dentro dele.

Não há outro meio de provocar uma revolução a não ser com escândalo e perplexidade. Se por outro lado, aquele que se empenha em tal iniciativa fracassa, se vê em meio a tão grave culpa e a equívocos sobre a índole de sua iniciativa que nem o próprio Cristo o tem por inocente. Ele mesmo adverte: Ai do mundo por causa dos escândalos; porque mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vêm! (Mt. 18.7). Todo o contexto do capítulo 18 de Mateus está enraizado na idéia de Jesus em se combater a ideia de superioridade espiritual. Fundamento de uma crítica ao sacerdócio enquanto ofício restrito a uma pequena elite. O escândalo mencionado por Cristo, se refere ao poder de desvirtuar o simples do Caminho, lembrando que ele mesmo provocou escândalos em suas polêmicas com a lei de Moisés e a religião oficial.

Corpo Morto procura refletir sobre o valor de todo o legado deixado pelos mentores da teologia de massa no Brasil, assim como o futuro de tais ministérios após a morte de seus fundadores. Será que a criatura (a instituição) suportaria a ausência da imagem (e todo o poder que ela representa) de seus fundadores? Tal reflexão ambiciona responder uma outra questão: existe afinal uma teologia legitimamente brasileira?

É importante uma teologia brasileira?

Quinto Capítulo de " Absinto"



Uma lembrança:

Espalhou-se a notícia que assassinatos em série estariam comovendo toda a cristandade: eram todos pregadores famosos, donos de vários programas de TV e rádio no Brasil e no resto do mundo. A princípio, acreditou-se tratar de algum ateu furioso evocando justiça contra o comércio religioso movido ás custas do trabalho duro de pessoas simples, sem instrução, que se deixam levar por promessas de curas milagrosas ou enriquecimento fácil, feitas por líderes carismáticos, porém, maldosos. Depois, com a mesma justificativa, pensou tratar-se de de algum fanático religioso, que de tão radical, decidiu por conta própria, extinguir da igreja esses criminosos, se utilizando até mesmo da violência. Uma inconsistência para muitos cristãos, pois ele não saberia estar cometendo um crime também? Afinal,  o joio anda com o trigo, e a violência é inadmissível nos evangelhos. Mas o caso continuou sem qualquer solução definitiva e a cristandade perplexa. 
Pastores começaram a andar armados, e a contratarem seguranças.Outros, preferiram abdicar do sermão público, limitando-se ás mídias. Mesmo assim não paravam de morrer. Houve protestos: alguns, apoiavam as mortes como um castigo de Deus por conta de grandes pecados, outros, outros a censuravam, como um ataque do diabo, mas a maioria ficava sem uma uma opinião definitiva. Falecidos, eram idolatrados por seus sucessores, nascendo a mitificação entre o povo. 

Os enterros, sempre longos, cheios de pompa e luxo, atraíam multidões. Um deles, num estádio de futebol, o defunto é posto num caixão de mármore e ouro, com um helicóptero derramando pétalas de rosa sobre ele. Um longo discurso é feito pelo novo bispo. Por fim, o caixão, alçado aos céus, ficará na sede mundial da igreja para visitação restrita, mediante uma oferta. 

Sim, era eu quem o substituía. 

A tensão consistia em saber de que eu poderia ser o próximo. De que a qualquer momento a morte chegaria sem qualquer aviso. De que para o povo eu morreria mártir. Mas o que me interessa o que acha o povo, quando o que se está em jogo é uma morte de verdade! A minha.


Estão matando nossos profetas!

Estão exterminando os homens que não dobraram seus joelhos a Baal.

- Cala a boca mulher! Alguém gritou.

O corpo sumiu.

Com a notícia, uma mulher desmaiou.

Alguns diziam se tratar de um milagre, outros porém, de uma brincadeira de muito mau gosto. Outros ainda, afirmaram se tratar de uma conspiração a fim de fazer o canalha do pastor se passar por um homem bom depois de morto, se é que de fato ele esteja morto de verdade ou apenas em fuga para algum lugar desse planeta onde consiga se passar por anônimo. Talvez o Irã ou a Coréia do Norte. Eu queria mesmo manda-lo para o inferno, mas se for para o Afeganistão ou a faixa de gaza já está de bom tamanho.

O fato é que alguém estava pretendendo encenar uma possível ressurreição. E alguns homens bem intencionados do povo começaram a acreditar nisso.

- Isso prova a santidade desse homem! Alguém da multidão gritou.

- Mas onde está o bendito corpo? Outro questionou.

Realmente o corpo sumiu. E ninguém sabia sequer onde começar a procurar, nem mesmo a polícia.



quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ressurreição

A você, que como eu, se sente decepcionado com os rumos tomados pelo cristianismo institucional. Que descobriu, que em nome de Cristo, aboliram o cristianismo, e colocaram no lugar uma caricatura, uma pintura, feita apenas para admiração poética ou até mesmo lógica, mas que mantêm a devida distância com o que se passa com as pessoas. Que fizeram do amor ao próximo uma utopia e o substituiram pelo amor ao dinheiro, ao status, fama, poder e hierarquia, quando em Cristo somos feitos irmãos e uma só família. Que descobriu que fizeram da santidade o sacrifício de almas extremamente dedicadas, e que diariamente vivem atormentadas quanto a sua salvação pessoal e ao seu destino eterno. Que fizeram da liderança a sacralização da vassalagem e do dízimo, a preocupação absoluta com os luxos do templo e das excentricidades de líderes religiosos do que a anônima assistência aos pobres.

A você que julgando não ter mais forças para continuar a acreditar em algo assim e que por isso resolveu abandonar tudo. Por julgar que definitivamente tudo está perdido, que o Cristo dos evangelhos tão poético e vivo, morto está em palavras e pedrificado no passado através desses textos que ninguém mais ousa sequer aproximar o ouvido. Que ao morrer, Jesus fora enterrado numa infinidade de dogmas, conceitos e teologias. A você que acredita que esse Cristo de que falam eloquentes pregadores está morto e ainda não viveu na vida das pessoas.

Tomé.

"Sejas Crente e não incrédulo".

Não é o que você vê que deve lhe dizer no que crer. Não é o templo, os dízimos, as teologias. Não é o moralismo dos puristas ou as hierarquias. Nada disso é Jesus Cristo. Sequer isso o representa, pois tudo isso está morto e condenado a não viver. Condená-los não só é racional, como evidente e não há como ser otimista quanto a isso.

" Bem aventurados os que não viram, mas creram".

Creia no que você quer ver. Alimente todas as suas esperanças no futuro, que para Jesus é a ressurreição. A ressurreição de Jesus o separa eternamente de tudo o que está morto, que leva o seu nome ou não. A ressurreição de Jesus é o futuro da ressurreição da criação que está em andamento, alterando as estruturas de poder até a extinção. Isso inclui igrejas, templos, religiões, deuses. Isso inclui seres humanos transformados, novos.

sábado, 3 de novembro de 2012

César e Cristo


* Leituras de Lc. 20.25 e Lc. 23.2.

Jesus, o messias.

Para um judeu religioso isso não constituiria ofensa alguma, a não ser quando esse messias, ao invés de optar pela violência, a fim de impor seu poder, escolhesse seguir justamente o caminho oposto. Um messias pacífico, diante das circunstâncias impostas, não consistia num crime romano, mas judaico, contudo, contra isso, legalmente judeu algum poderia fazer qualquer coisa. A apelação ao direito romano era inútil, pois não existia na alegação de messias um crime em si. O camponês judeu não poderia comparar-se a César. Deixou claro que era o messias e que era rei, mas não desse mundo, não da forma como as coisas estão. Pilatos não poderia condená-lo por isso. 

A acusação estabeleceu numa única fórmula um crime político e outro religioso, satisfazendo assim ambos os lados: um messias que proíbe o tributo a César. Para um judeu devoto toda a nação pertence a Deus, ou seja, César fica com absolutamente nada. Seu poder é ilegítimo, não apenas sobre os judeus, mas também sobre os próprios romanos. Foi isso que os judeus entenderam da clássoca máxima de Jesus: " Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Era isso que muito provavelmente Jesus ensinou de fato. Que diante de Deus todo poder é ilegítimo, tanto que saberia que morreria por isso. 

Nada pertence a César, tudo pertence a Deus. As consequências são assustadoramente poderosas: Deus não é uma entidade abstrata, distante dos homens, ele governa, e diferente dos monarcas ,presidentes e ditadores, ele é próximo e íntimo. Seu governo não é teocrático. Segundo Jesus, é patriarcal. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Corpo Morto


Capítulo I

Uma mesa de necrópse.

Um homem deitado nela.

Era alto, muito branco, aparentando uns trinta anos, de cabelos vermelhos como o ferro  e o corpo coberto de tatuagens.

Essa é a história:

Quando criança, pequeno e franzino, uma das poucas diversões que tinha, consistia em importunar o gato que havia em casa. Inocente, o carregava comigo, tendo minhas duas  mãos presas em seu pescoço, ou então, o puxava pelo rabo, percorrendo a sala junto com outros brinquedos. Quase sempre sozinho.  Não, não se tratava de uma criança perversa, mas sim de alguém que ainda estava aprendendo a descobrir a vida.
Tombei no chão. Ao acordar, observei meu corpo, e parecia que estava dormindo. Eu estava morto. Me desesperei e confuso tentei gritar e chorar com todas as forças, como qualquer criança da minha idade faria, mas não podia. Minha alma havia sido presa no corpo de um gato.

Alguém gritou meu nome, e eu despertei. Estava de volta ao meu corpo, e o gato, bem ao meu lado, era só um cadáver estirado no chão da sala. Consegui chorar e gritar. Minha mãe se aproximou e me abraçou. Nunca mais fui o mesmo. Essa experiência involuntária se tornou freqüente, e com o tempo aprendi a controlar. Certa vez, na escola, troquei de corpo com um colega de classe a fim de colar na prova. Ao retornar ao meu corpo, percebi que ele não acordava. A professora o chamou, alguns alunos também, mas era tarde demais. Como o meu gato, ele também havia morrido. Até então nunca mais tentei realizar tal experiência novamente, até descobrir que poderia tirar melhores vantagens disso.

Agora estou no corpo de uma velha de noventa anos e se eu não voltar ao meu corpo de origem, dentro de pouco tempo eu posso morrer para sempre. O grande problema é justamente o de saber quanto tempo é esse.

Merda!