Porque o Reino
de Deus se manifesta justamente com a chegada da vida eterna? Justamente porque
o reino dos homens somente pode subsistir com a permanência da morte, da
violência e da injustiça. O eterno e o temporal são elementos característicos
que distinguem e identificam o humano e o divino, e enquanto essa
heterogeneidade, essa distância persistir, o divino sempre será objeto de
veneração e almejo do homem (seja do ponto de vista ontológico, psicológico,
social, político e etc.). Constituirá portanto, parte de sua história.
Construirá a sua história. Um Deus eterno sempre fará parte da história de um
homem limitado pelo tempo. Constitui-se portanto, de uma mútua carência: o
homem procura Deus através de seu anseio pela eternidade e Deus procura o homem
através de seu anseio pelo tempo, que para o homem é concreto (regulador da
vida e da morte, no desenvolvimento e decadência das sociedades e etc.). Esse é
um dos sentidos fundamentais da encarnação: Deus se torna homem, mergulha no
tempo, afim de que todo homem tenha a oportunidade de mergulhar na eternidade.
Esse é o sinal de inauguração do Reino de Deus em Cristo Jesus.
Todavia, esse é uma ato realizado pelo próprio Deus,
solapando assim todo projeto humano de autonomia. Deus se impõe ao homem, mesmo
em amor.
O que
significaria vida eterna? O cristianismo se destaca de todas as religiões
justamente porque confere à eternidade presente do homem (alcançada mediante a
fé) a consciência de que isto significa uma mudança radical de valores. Em
outra palavras, ensina que a conduta do homem é naturalmente tendenciosa ao
horizonte da finitude. O destino da morte (como aniquilamento total da
existência ou incerteza quanto ao futuro pós-morte) constitui a conduta de
homens irresponsáveis e omissos aos problemas do mundo e de suas comunidades e
mais interessados em sua satisfação pessoal. Conduta típica da maioria. Por
outro lado, o cristianismo oferece a vida eterna e insiste entre seus adeptos a
pensarem como se vivessem eternamente, mesmo tendo em vista a realidade
passageira da morte de sua limitação ao corpo.
Absinto, embora uma ficção, procura
realizar uma reflexão sobre o trajeto de retorno nesse processo, o passo
inverso. Procura entender o secularismo, cujo projeto de autonomia, se
realizaria de maneira plena a partir da conquista humana da imortalidade. Em
sua radicalidade, a “morte de Deus” nietzscheniana é um projeto provisoriamente
fracassado. Uma sociedade onde Deus esteja realmente “morto”, onde os homens
estejam alheios a qualquer espécie de esperança metafísica, somente ganha
sentido com a imortalidade do homem. Dessa maneira, nossa maneira de
compreender a civilização mudaria drasticamente.
Sem a morte a
violência se tornaria uma forma de diversão. Algo não muito diferente dos
nossos dias, mas concerteza, algo bem mais intenso. Declaradamente sarcástico e
masoquista. Sem a morte o sexo de igual modo se destinaria apenas para
diversão, entretanto, não como uma norma cultural, mas jurídica. O crescente
aumento da natalidade extinguiria rapidamente os recursos naturais da terra.
Rendendo-se ao divertimento, nossos hábitos sexuais também seriam profundamente
alterados, o corpo ganharia uma acentuada valorização, e a busca desenfreada
pela satisfação dos sentidos um motivo para guerras. Nasce a partir daí, um
novo homem, e por isso, uma nova forma de sociedade e civilização.
Entretanto, o
super-homem nietzscheniano não surge apenas da vitória do humano sobre o divino
através do roubo de fogo dos deuses, a imortalidade. Não se trata apenas de
vencer o divino e a morte, mas também de esquece-lo. Se nossa civilização fora
construída a partir da encarnação de Deus na história ocidental, isso produz
uma lembrança histórica que torna o divino uma realidade impossível de ser
aniquilada. Deus não estaria morto, mas seria transformado, ressuscitado,
adaptado às novas circunstâncias. A morte nietzscheniana de Deus se
estabeleceria num segundo momento com a aniquilação da memória metafísica. Um
procedimento complexo, pois nos referimos ao divino como um conceito enraizado
na memória social das civilizações. O grande mentor dessa memória consiste no
nosso conceito linear de tempo. Esse mesmo conceito determina nossa forma de
produzir, de pensar, de viver e de morrer na cultura ocidental. A morte
nietzscheniana de Deus se processaria dessa maneira como um rompimento doloroso
de uma civilização com todo o seu passado. Sem memória, tudo deveria ser
incessantemente re-criado a cada dia, inclusive a consciência dos homens.
Planeta dos Macacos resgata a idéia de
se estar num mundo completamente rompido com o seu passado. Os macacos na
realidade são outra espécie de homens oriundas desse rompimento, dessa
distância. Criando uma nova civilização, eles criaram um novo começo para o
homem, uma nova memória, uma nova história, uma nova forma de contar o tempo. Cidade das Sombras, à sua maneira,
também tenta explorar esse conceito. Apoiará toda a sua narrativa na proposta
de que a memória é uma constante entre causas e efeitos, lineares ou
circulares, determinando assim um conceito específico de temporalidade, logo,
de história. Não há passado sem memória, e isso somente pode ser interrompido
se o tempo (linear ou circular) deixar de ser uma constante – o que é
naturalmente impensável se não alterarmos as leis da lógica e do bom senso.
Dessa maneira, o filme irá reduzir a constante temporal o máximo possível (a
fim de resguardar ao filme certa coerência lógica). Isso é bem expresso no
filme quando os alienígenas apagam a memória dos moradores da cidade a cada
noite e a re-programam para o dia seguinte, ou seja, a memória social (logo, a
história) é mantida durante apenas todo o decurso do dia, sendo quebrada
(perdendo assim sua seqüência lógica) entre um dia e outro. A cada dia uma nova
história é contada, uma nova ordem lógica, uma nova memória.
O onírico
representa bem essa nova maneira de compreender o tempo, sem ordem lógica e não
histórica. O onírico é por si mesmo um mundo sem história, sem passado e sem
futuro, sem memória. O filme Um Cão
Andaluz de Luiz Bruñel e Salvador Dali, expressa bem esse tipo de universo.
Fazendo uma ponte entre Nietzsche e Freud, fica fácil entender que o
super-homem nietzscheniano é o próprio Dionísio, um homem ausente de
repressões, senhor de sua vontade. Isso somente seria possível de maneira plena
com a posse da eternidade. Um homem ausente de repressões é um homem ausente de
culpa, logo, de memória também.
O que seria
entretanto, uma civilização dionisíaca, se levarmos em consideração, diferente
dos gregos, nossa intensa produção tecnológica? Não existem respostas
convincentes para uma questão como essa, entretanto, é possível arriscar.
Arriscar fazendo ficção. É essa a proposta desse livro.
No futuro, os
homens vivos poderão viver para sempre ou planejar quando deseja morrer. A
descoberta da imortalidade alterou nossa maneira de enxergarmos toda a
civilização (o sexo como procriação se tornou um crime, a fim de se evitar a
superpovoamento do planeta, todavia, é aceito como pura diversão, gerando as
maiores bizarrices; sem a morte o homem não tem medo, não possui dilemas
existenciais, todavia, extremamente violento, reinventado o conceito de
violência, o aumento da violência gratuita acaba com a amizade e o amor; não há
mais morte, contudo há dor, muita dor; sem a morte acreditar em Deus se torna
desnecessário). O caso de João é excepcional, pois não se tem notícia, ou
tecnologia para se fazer alguém morto a tanto tempo retornar à vida, a não ser
através de clonagem. Contudo, clones não possuem a mesma memória da matriz.
O grande enigma
do personagem central consiste no fato de que, com o controle de natalidade estagnado, todos
os indivíduos são conhecidos por um sistema global. João aparece do nada.
Acorda e anda errante num mundo totalmente estranho ao mundo que conhecia no
passado. João é reconhecido como um corpo estranho pelo sistema, pois não tem
uma origem, e dessa maneira não se sabe o seu fim. Não tem passado. Seu único
vínculo com o passado é a sua memória.
Ele então passa
a ser ouvido. Sua memória não apenas expressa doces lembranças pessoais, mas o
único registro de uma civilização que fora apagada da história. Interpretar o
caso de nosso personagem como um milagre é constrangedor para o futuro. Nessa nova
civilização, não há fé ou qualquer registro história das religiões e de Deus.
Um mundo onde Deus não existe e por isso mesmo não possui história. O futuro é
um mundo sem Deus, sem morte e sem classes (os políticos pensaram: se o poder
da imortalidade pertencer apenas aos mais ricos, enquanto houver morte haverá
fé em Deus. Alem,
disso haverá por parte de uma classe ou outra a justificativa para se pregar
eugenia). A partir daí ele conta a história de Deus. Ele se torna um profeta,
e por isso mesmo, marginal. E como todo profeta, estabelecerá uma crise no
futuro: a morte e ao colapso social.
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