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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Carta a Um Jovem Budista



Amigo,

Assumir em minha identidade o título de “cristão” consiste em sustentar aos olhos de muitas pessoas uma história. Para alguns, idealista e poética, para outros, materialista e maléfica. Aqui reside toda a ambigüidade que o termo socialmente indica, o que para mim é perfeitamente compreensível.

O cristianismo possui uma história, e conhecê-la é de certo modo reveladora. Nesse aspecto, o tempo no seminário, aliado a um permanente questionamento da minha fé, tornaram-se muito frutíferos.  A natureza da história do cristianismo nos convida a entender que nada ou muito pouco dos ideais propostos por Jesus correspondem hoje ao que entendemos como cristianismo. Que a bíblia sofreu uma série de adulterações textuais, sem falar nos problemas inatos do texto devido a sua antiguidade e dificuldade de transmissão ao longo da história. Que por toda essa dificuldade torna-se impossível hoje compreender o que Jesus de fato fez e ensinou. Isso parece bem desanimador. Por outro lado, consiste numa das primeiras descobertas que um estudante de teologia faz num bom seminário. O choque é inevitável. Todavia, essas mesmas descobertas não foram feitas por pessoas alheias a religião, particularmente ao cristianismo. Adaptações e revisões foram feitas diante dessa nova realidade. É inegável que o cristianismo vem sofrendo uma série de adaptações e revisões desde sua origem. Essa transformação chamamos de cristandade.

A cristandade não é o cristianismo. Minha intenção com esta carta é propor uma reflexão sobre essa diferença, até mesmo oposição entre elas e como particularmente entendo o cristianismo e sua interferência em minha ética pessoal. Falarei pouco sobre o budismo: a questão aqui não consiste em justificar motivos pelos quais não sou budista, mas sim, porque sou cristão.

A cristandade consiste na transformação do cristianismo em instrumento de dominação política, econômica, social e moral, ou seja, consiste em fazer do cristianismo um instrumento de poder. Quando isso aconteceu, o cristianismo foi reduzido a uma dogmática que atendia aos interesses do império romano, seu conceito de verdade tornou-se idealista e unilateral. A justificativa para isso estava na formação de um canôn, uma coleção de livros sagrados, e posteriormente numa hierarquia religiosa.

O que é a bíblia? A resposta a essa pergunta definiu a forma de interpretá-la como um todo. Foi a cristandade a responsável em concebê-la, e os textos que a compõe, particularmente o Novo Testamento, foram escritos para comunidades culturalmente tão diferentes entre si, a fim de resolver problemas específicos nessas comunidades, envolvendo questões morais ou a própria fé em Jesus como messias, que seus escritores sequer tinham a intenção de escreverem um tratado universal para os cristãos de todos os tempos. Os textos são situacionais. A idéia de reunir esses textos culturalmente díspares trouxe sérios problemas, seja entre as comunidades de onde esses textos vieram, seja para a formulação de uma dogmática, ou seja, de uma doutrina oficial (e política) do que seria o cristianismo de Jesus.

Para que você tenha uma idéia: Jesus é o messias. Disso todos os evangelistas concordam. Mas cada um possui uma idéia diferente de messias: rei de Israel (Mateus), o cordeiro de Deus que pagaria pelos pecados do povo (Marcos), o “filho do homem”, o messias tal como descrito pelo profeta Daniel (Lucas) ou o próprio Deus em pessoa (João). A teologia nasceu a fim de resolver esse problema. Os teólogos eram em sua maioria antigos filósofos “convertidos” ao cristianismo do imperador, que eram pagos para que de alguma maneira harmonizassem esses textos tão diferentes entre si. Eles se utilizaram da filosofia grega para isso. O cristianismo passa por um refinamento intelectual (pois antes, tratava-se de uma religião minoritária destinada a párias sociais) e sob a tutela da teologia e do imperador ganha status social.

Muita coisa do que compreendemos como cristianismo e sua visão de Deus nasceu nesse período: O Deus simultaneamente onipotente, onipresente e onisciente, a trindade, o sacrifício expiatório e etc. O império se torna cristão, a teologia, que justifica o poder do imperador torna-se a mãe de todas as ciências e a bíblia, torna-se a palavra literal de Deus. Particularmente compreendo que debater essas questões como se fossem inatas ao cristianismo é tolice. A bíblia é a palavra literal de Deus e a interpretação dos teólogos é a correta interpretação dessa palavra. Contestar essa interpretação não era considerado o mesmo que contestar os teólogos ou o imperador. Era o mesmo que contestar Deus.

A cristandade nasceu como simbiose da cultura Greco-romana e do cristianismo transformado em instrumento de dominação política. A cristandade marcou o início da civilização ocidental, inserindo na cultura um calendário “cristão”, uma legislação civil “cristã” e etc. Qualquer outro tipo de poder, estranho ao poder dominante, era facilmente reprimido: surgem as cruzadas, inquisição e uma série de guerras religiosas. A reforma protestante mudou um pouco, mas não completamente essa situação: a bíblia, do latim foi traduzida para a língua do povo. A autoridade sobre a bíblia fora destituída de uma elite. Acontece que a maior parte da população na Alemanha, na época era analfabeta e muito pobre. Uma bíblia era muita cara. Os primeiros beneficiários dessa iniciativa da reforma foram os nobres e os intelectuais insatisfeitos com o poder da igreja, e que por isso apoiavam Lutero. A bíblia passa a ser lida entre esses primeiros partidários da reforma (eruditos) não como palavra literal de Deus, mas como literatura e com interesse científico. Muitas descobertas interessantes partem daí: incoerências textuais, cronológicas e históricas tornam-se evidentes. O valor espiritual da bíblia estaria fora dessas questões.

Surge uma segunda escola da interpretação bíblica, oposta ao ortodoxismo. Chamava-se liberalismo. Essa corrente se caracteriza pelo estudo crítico do texto bíblico, sem desmerecer seu valor espiritual que é reduzido a uma moral. Para um liberal, a bíblia não é literalmente a palavra de Deus, mas sim o testemunho ou o registro, totalmente humano, da experiência que um povo ou indivíduos tiveram com o sagrado. Para um liberal, a experiência com o sagrado é mediada por pessoas inseridas numa cultura específica, sendo assim, é a cultura (com seus conceitos e pré-conceitos) quem vai oferecer uma forma específica à experiência religiosa, que é universal. Sendo assim, os livros sagrados de outras tradições religiosas são tão inspirados divinamente quanto a bíblia, apenas situam-se em culturas diferentes. Para um liberal, a bíblia consiste num tratado de moral e Jesus é um professor de moral. Todos os milagres são alegorias destinadas a transmitir valores morais.

A tarefa de um teólogo liberal (que não presta mais serviços a um império, mas à ciência) consiste em reinterpretar esses mitos, tendo como referência a cultura de onde vieram, traduzindo aos homens de hoje seu valor moral universal.

Contudo, o liberalismo ainda constitui a cristandade, aliada a revolução científica e a promoção das liberdades individuais. O protestantismo liberal e progressista sempre esteve vinculado ao poder político, particularmente na Inglaterra. Houve uma reação a isso: grupos que ficaram conhecidos como pietistas ou separatistas, que defendiam a separação entre igreja e Estado, bem como uma “purificação” moral da igreja. No início foram duramente perseguidos, em seguida, enviados às treze colônias americanas, junto com uma infinidade de criminosos, a fim de colonizar as novas terras sem interferirem nos interesses do Estado Inglês. Na América eles ficaram conhecidos como puritanos.

O puritanismo se caracteriza por restabelecer o ortodoxismo teológico no âmbito privado, da consciência. Isso de deve ao conceito de pecado ser a principal temática na época para sermões e na teologia. Fruto de uma interpretação dos tempos que se estavam vivendo como ações de um Deus punitivo: epidemias, fome e doenças contagiosas devastaram a Europa. Os impactos psicológicos dessas experiências, foram transmitidas às gerações, principalmente na religiosidade. Que chegou à América. Tal perspectiva era ignorada pelo protestantismo luterano. Essa influência deve-se principalmente à Calvino.

Calvino, tal como os teólogos católicos, fazia do pecado um conceito jurídico (ele era advogado por formação, não teólogo). Sendo assim, o pecado representava uma inconformidade a certos padrões legais divinos. Nessas condições não havia como evitar o moralismo. Lutero compreendia a questão de forma bem mais amena: o pecado não consiste numa questão jurídica, do ato, mas existencial, do sujeito, inerente à condição humana. Contudo, isso não representaria a perdição absoluta. Pela fé Cristo torna-se o tutor do pecador, mas o pecador não deixa de ser quem é. Não há moralismo em Lutero.

Acontece que, sem levar em conta ás missões católicas presentes desde o descobrimento (fruto da contra-reforma), nós brasileiros fomos “evangelizados” por puritanos. A visão que temos do cristianismo é oriunda deles. O proselitismo torna-se uma outra questão nesse processo. Entre os puritanos a salvação não é pessoal, mas coletiva. A salvação do indivíduo depende da salvação do grupo, mediada pelo moralismo. O puritanismo é fundamentalmente imperialista. A salvação coletiva está fortemente vinculada a interferência da religião na vigilância da moral pública, isto significa, interdições ao interesse do Estado a legalização do aborto, prostituição, uso legal das drogas, casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e etc. Para que essa interferência seja feita, horários na TV aberta são comprados para doutrinação moral, assim como, torna-se comum a participação de religiosos na política.

Mais uma vez insisto: isso em nada se parece com o cristianismo. Pelo contrário, é sua oposição. Para algumas pessoas o cristianismo está tão diluído na cristandade que torna-se impossível uma distinção. Para algumas pessoas os ensinamentos de Jesus estão tão sedimentado em outras tradições sintetizadas na bíblia que sua doutrina é considerada perdida para sempre. Até onde se sabe, Jesus não escreveu nada, e é muito provável que não tenha deixado nada escrito. Depois de sua passagem pela historia, a partir do segundo século, surgiram inúmeros movimentos, que embora muito diferentes entre si, definiam-se como seguidores de Jesus.

Além do mais, o problema “O Que é o Cristianismo?” não é novo, já era pré-existente no primeiro século de nossa era, isso porque nem mesmos os discípulos sabiam quem de fato Jesus era. É justamente desse problema que São Paulo trata em sua teologia. O cristianismo não se trata efetivamente num conjunto de dogmas. Não se trata na fé em conceitos. O cristianismo consiste na fé numa pessoa, Jesus Cristo. E mais ainda: que essa pessoa, diferente de todas as outras, venceu a morte. Esse é um ponto tão central dentro do Novo Testamento que todos os relatos, embora divergentes em vários pontos, concordam na realidade da ressurreição literal de Jesus.

Duas colocações são necessárias sobre esse assunto: sabemos que a religião responde a certas necessidades. Que a ressurreição, por ser tão importante para os cristãos, responde ao problema irremediável da morte. O grande problema para o cristianismo não é a existência de Deus, ou do pecado, do céu ou do inferno. É a morte! Um problema concreto. A eternidade da alma, particularmente sugere não a fuga de uma vida à outra, mas sim de que a vida é tão boa que não precisa acabar. A mesma vida. Que a felicidade não está além, mas no aquém, pois existir representa essa felicidade. A grande vantagem da eternidade é a duração. Outra coisa bem diferente da vida, consiste nas circunstâncias em que essa vida está situada: cultura, religião, economia, família e etc. Para a maioria dos cristãos, a estrutura pela qual a vida está sendo sustentada não é boa. Pelo contrário, é tão ruim que não mudará para melhor nunca. Que por conta disso o mundo irá de mal a pior. Tanto que, caso exista vida após a morte, não existe estimativa de voltar novamente para esse mundo. É por isso que a grande maioria dos cristãos ocidentais mais ortodoxos não acreditam na reencarnação. Isso respondeu a necessidade psicológica dos cristãos falarem do céu. Onde a vida continua em circunstâncias novas, melhores.

Outra questão importante, é que objetivamente falando, mortos não ressuscitam. Sendo assim, para qualquer pessoa de bom senso, crer na ressurreição de um homem com pelo menos três dias de morto é um absurdo. Para o mundo helênico, antes da cristianização, também. Isso nos permite compreender que antes da institucionalização, nem mesmo uma ideologia o cristianismo representava, quanto mais uma religião. Um movimento de párias, isto sim, que no império representava um número inexpressivo e sem importância significativa. Um movimento destinado à extinção. Se Jesus não ressuscitou, não há nada que justifique a sobrevivência de um grupo assim. Se o corpo foi roubado da tumba pelos apóstolos e depois espalhada a notícia de sua ressurreição, não há nada que justifique o fato de muitos desses mesmos apóstolos terem sido mártires. Afinal, quem morreria consciente por uma mentira?

Um comentário:

Luis Felipe disse...

Sensacional! Como é muito fácil criticar, vou fazer uma crítica: explore mais as coisas boas do cristianismo, o lado pessoal, a prática literal dos ensinamentos...