Recentemente
terminei de ler o livro de Lisa Miller Paraíso:
nossa eterna fascinação com a pós-vida (Ed. Nossa Cultura/ 2010) onde a
autora procura compreender a evolução histórica da idéia de paraíso nas
religiões monoteístas, desde o contexto por onde essas teologias surgiram, até
os dias atuais onde essas teologias oferecem apenas o ponto de partida para uma
infinidade de insights individuais
sobre o que nos espera depois da morte. O livro deixa evidente a preocupação
que o homem contemporâneo tem com a sua felicidade. Quase uma obsessão. Não
apenas nesta vida, mas, principalmente na próxima. Isso acontece pela
constatação de que a busca pela felicidade individual está por si mesma condenada
ao fracasso diante de tantos impedimentos, principalmente o da competição entre
os homens, onde a felicidade de um, determina a infelicidade do outro. A idéia
do paraíso constituiria, portanto, a vida da plenitude do desejo: cristãos
vagam por entre ruas de ouro e outras pedras preciosas, mulçumanos têm a
disposição dúzias de virgens (embora alguns teólogos do Islã contestem o termo houris, virgem em árabe, como específico
a escravas sexuais) e judeus estarão reunidos ao seu povo.
Muito
embora os textos sagrados dessas religiões contenham imagens desse tipo,
particularmente, não compreendo o paraíso como o lugar da plenitude do desejo
individual como uma questão central, dogmática. O paraíso não constitui apenas
o lugar da plenitude do desejo, pois nesse caso, insistiriam nossos estudiosos
em religião, sua causa seria inteiramente material, idealização de um desejo infantil
e reprimido por felicidade. O paraíso também é o lugar do trono de Deus, antes,
segundo a tradição judaica, inacessível aos homens. O paraíso constitui o lugar
daquele que encontrou em Deus a plenitude do seu desejo. É por isso que o
martírio é compreendido como acesso direto ao paraíso: o mártir é aquele que
faz de Deus a plenitude do seu desejo.
Outra
questão que o livro levanta indiretamente é a memória. Atualmente a crença no
paraíso está relacionada ao contato permanente com as pessoas que amamos: pai,
mãe, irmãos, a família de uma forma geral. Um tipo de teologia bastante
defendida pelos mórmons, onde não apenas os laços de sangue são defendidos como
perpétuos, mas também a memória. Teremos memória na eternidade?
A
memória constitui a individualidade. A teologia bíblica insiste na perpetuidade
dessa individualidade, logo, da memória. Jesus ressuscitou com memória, sabia
quem era e quem eram seus discípulos (Cf. Lc. 24.36-51). Os mártires exigem
justiça diante do trono de Deus a respeito de tudo o que sofreram e do
testemunho que deram (Cf. Ap. 6.9-10). Por outro lado, a perpetuidade da
memória colabora (e muito) para a crença na perpetuidade dos laços afetivos, o
que o próprio Jesus condenou em seu debate com os saduceus (Cf. Mt. 22. 23-33).
Como é possível a perpetuidade da memória sem a perpetuidade dos laços
afetivos? Uma questão não tão fácil de ser respondida. O rico no hades, segundo
uma das parábolas mais conhecidas de Jesus, sabe quem é, quem são seus irmãos e
seu pai. Ele tem voz ativa no texto em seu diálogo com Abraão (Cf. Lc.
16.19-31). Lázaro por outro lado é consolado no seio do patriarca (a TEB traduz
o texto colocando Lázaro ao lado e não no seio de Abraão). Lázaro não interage
com o rico ou se pronuncia sobre o assunto. Abraão é o mediador da conversa e
deixa explícito a impossibilidade de interação entre os dois. Lázaro não tem
voz no texto.
A
ausência de laços afetivos na eternidade também coloca algumas questões importantes:
define o amor como o bem que nasce do constante risco da perda. O amor a Deus e
ao próximo, ao amigo e ao inimigo nascem do constante risco que temos em
perdê-los eternamente. Daí a urgência em amar. Porque a morte irá extinguir
eternamente nossas formas convencionais de nos relacionarmos. Embora limitado,
o amor concede aos nossos relacionamentos provisórios sua importância na
temporalidade. Sendo assim, acredito que uma parte da nossa individualidade,
logo, de nossa memória, particularmente, a mesma envolvida na forma como
moldamos culturalmente nossos relacionamentos hoje, se extinguirá para sempre.
A mesma que nos separa e nos divide. A mesma que nos faz pensar em nossos
desejos individuais. Sendo assim, não posso compreender o paraíso como o lugar
da plenitude do desejo individual, mas sim, do desejo coletivo. Onde todos
querem a mesma coisa. Onde a “pureza de coração é querer uma só coisa” conforme
escreveu Soren Kierkegaard num de seus discursos edificantes. E quem descobriu
isso, descobriu o segredo do paraíso.
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