“...
quando o áugere cumpre a sua tarefa e declara que o deus reclama o sacrifício
de uma jovem, o pai deve então, heroicamente, efetuar tal sacrifício. Ocultará
com nobreza a sua dor, apesar do desejo de ser o homem insignificante que ousa
chorar, e não o rei obrigado a agir como tal. E se, na sua solidão, o coração
se lhe enche de dor, não tendo entre o seu povo senão três confidentes, em
breve todos os súditos conhecerão o seu infortúnio e a nobre ação de consentir,
no interesse geral, o sacrifício de sua virgem e amada filha (...). A diferença
que separa o herói trágico de Abraão salta aos olhos. O primeiro continua ainda
na esfera moral (...). Muito diferente é o caso de Abraão. Por meio do seu ato
ultrapassou todo estádio moral (...). Não age para salvar um povo, nem para
defender a idéia de Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados. Se
pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto
Abraão. Assim, enquanto o herói é grande pela sua virtude moral, Abraão é-o por
uma virtude estritamente pessoal. (Soren
Kierkegaard em “Temor e Tremor”).
É difícil deixar-se
convencer por Abraão, pois os deuses de outros povos, cada um à sua maneira,
exigiam jovens em sacrifícios. Sendo assim, torna-se difícil distingui-lo de um
pagão, de um adorador de ídolos, de uma ficção. Em que difere Abraão de um
simples camponês grego que igualmente entrega sua única filha para ser
sacrificada aos deuses? Os deuses exigem virgens, e em troca, garantem a
proteção da cidade contra os desastres naturais e guerras. Garantem boas
colheitas e rebanhos cada vez maiores. O pai, ao entregar sua única filha ao
sacerdote, embora a ame com todas as suas forças, com o seu coração partido,
prefere desistir dela pois sabe para que ela está sendo sacrificada. As colheitas
e os rebanhos, assim como a paz entre os vizinhos precisam continuar. Seu gesto
de desapego será visto como heroísmo e será recompensado por isso. Ele receberá
homenagens e serão escritas dúzias de canções e livros sobre seu feito. Mas ele
ama sua filha, e por isso prefere suportar em silêncio, até o fim de seus dias
a dor em perdê-la. Mas ele sabe porque a perdeu e os efeitos disso.
Abraão não sabe de
coisa alguma. Deus lhe exige de volta o que lhe deu. Seu ato não defenderá o
bem de quem seja, nem mesmo o seu próprio bem. Sendo assim, nada pode
justificá-lo. Ele não será honrado ou terá seu nome louvado entre o povo. Terá
de suportar em silêncio sua dor. Não, Abraão não se iguala aos homens de seu
tempo. Foi-lhe exigido superá-los. Mas não sem dor, sem angústia, sem solidão.
Seu ato de fé o tornava um homem singular, como nenhum outro, em toda a
história.
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