Amigo,
Assumir
em minha identidade o título de “cristão” consiste em sustentar aos olhos de
muitas pessoas uma história. Para alguns, idealista e poética, para outros,
materialista e maléfica. Aqui reside toda a ambigüidade que o termo socialmente
indica, o que para mim é perfeitamente compreensível.
O
cristianismo possui uma história, e conhecê-la é de certo modo reveladora.
Nesse aspecto, o tempo no seminário, aliado a um permanente questionamento da
minha fé, tornaram-se muito frutíferos.
A natureza da história do cristianismo nos convida a entender que nada
ou muito pouco dos ideais propostos por Jesus correspondem hoje ao que
entendemos como cristianismo. Que a bíblia sofreu uma série de adulterações
textuais, sem falar nos problemas inatos do texto devido a sua antiguidade e
dificuldade de transmissão ao longo da história. Que por toda essa dificuldade
torna-se impossível hoje compreender o que Jesus de fato fez e ensinou. Isso
parece bem desanimador. Por outro lado, consiste numa das primeiras descobertas
que um estudante de teologia faz num bom seminário. O choque é inevitável.
Todavia, essas mesmas descobertas não foram feitas por pessoas alheias a
religião, particularmente ao cristianismo. Adaptações e revisões foram feitas
diante dessa nova realidade. É inegável que o cristianismo vem sofrendo uma série
de adaptações e revisões desde sua origem. Essa transformação chamamos de
cristandade.
A
cristandade não é o cristianismo. Minha intenção com esta carta é propor uma
reflexão sobre essa diferença, até mesmo oposição entre elas e como
particularmente entendo o cristianismo e sua interferência em minha ética
pessoal. Falarei pouco sobre o budismo: a questão aqui não consiste em
justificar motivos pelos quais não sou budista, mas sim, porque sou cristão.
A
cristandade consiste na transformação do cristianismo em instrumento de
dominação política, econômica, social e moral, ou seja, consiste em fazer do
cristianismo um instrumento de poder. Quando isso aconteceu, o cristianismo foi
reduzido a uma dogmática que atendia aos interesses do império romano, seu conceito
de verdade tornou-se idealista e unilateral. A justificativa para isso estava
na formação de um canôn, uma coleção de livros sagrados, e posteriormente numa
hierarquia religiosa.
O
que é a bíblia? A resposta a essa pergunta definiu a forma de interpretá-la
como um todo. Foi a cristandade a responsável em concebê-la, e os textos que a
compõe, particularmente o Novo Testamento, foram escritos para comunidades
culturalmente tão diferentes entre si, a fim de resolver problemas específicos
nessas comunidades, envolvendo questões morais ou a própria fé em Jesus como
messias, que seus escritores sequer tinham a intenção de escreverem um tratado
universal para os cristãos de todos os tempos. Os textos são situacionais. A
idéia de reunir esses textos culturalmente díspares trouxe sérios problemas,
seja entre as comunidades de onde esses textos vieram, seja para a formulação
de uma dogmática, ou seja, de uma doutrina oficial (e política) do que seria o
cristianismo de Jesus.
Para
que você tenha uma idéia: Jesus é o messias. Disso todos os evangelistas
concordam. Mas cada um possui uma idéia diferente de messias: rei de Israel
(Mateus), o cordeiro de Deus que pagaria pelos pecados do povo (Marcos), o
“filho do homem”, o messias tal como descrito pelo profeta Daniel (Lucas) ou o
próprio Deus em pessoa (João). A teologia nasceu a fim de resolver esse
problema. Os teólogos eram em sua maioria antigos filósofos “convertidos” ao
cristianismo do imperador, que eram pagos para que de alguma maneira
harmonizassem esses textos tão diferentes entre si. Eles se utilizaram da
filosofia grega para isso. O cristianismo passa por um refinamento intelectual
(pois antes, tratava-se de uma religião minoritária destinada a párias sociais)
e sob a tutela da teologia e do imperador ganha status social.
Muita
coisa do que compreendemos como cristianismo e sua visão de Deus nasceu nesse
período: O Deus simultaneamente onipotente, onipresente e onisciente, a
trindade, o sacrifício expiatório e etc. O império se torna cristão, a
teologia, que justifica o poder do imperador torna-se a mãe de todas as
ciências e a bíblia, torna-se a palavra literal de Deus. Particularmente
compreendo que debater essas questões como se fossem inatas ao cristianismo é
tolice. A bíblia é a palavra literal de Deus e a interpretação dos teólogos é a
correta interpretação dessa palavra. Contestar essa interpretação não era
considerado o mesmo que contestar os teólogos ou o imperador. Era o mesmo que
contestar Deus.
A
cristandade nasceu como simbiose da cultura Greco-romana e do cristianismo
transformado em instrumento de dominação política. A cristandade marcou o
início da civilização ocidental, inserindo na cultura um calendário “cristão”,
uma legislação civil “cristã” e etc. Qualquer outro tipo de poder, estranho ao
poder dominante, era facilmente reprimido: surgem as cruzadas, inquisição e uma
série de guerras religiosas. A reforma protestante mudou um pouco, mas não
completamente essa situação: a bíblia, do latim foi traduzida para a língua do
povo. A autoridade sobre a bíblia fora destituída de uma elite. Acontece que a
maior parte da população na Alemanha, na época era analfabeta e muito pobre.
Uma bíblia era muita cara. Os primeiros beneficiários dessa iniciativa da
reforma foram os nobres e os intelectuais insatisfeitos com o poder da igreja,
e que por isso apoiavam Lutero. A bíblia passa a ser lida entre esses primeiros
partidários da reforma (eruditos) não como palavra literal de Deus, mas como
literatura e com interesse científico. Muitas descobertas interessantes partem
daí: incoerências textuais, cronológicas e históricas tornam-se evidentes. O
valor espiritual da bíblia estaria fora dessas questões.
Surge
uma segunda escola da interpretação bíblica, oposta ao ortodoxismo. Chamava-se
liberalismo. Essa corrente se caracteriza pelo estudo crítico do texto bíblico,
sem desmerecer seu valor espiritual que é reduzido a uma moral. Para um
liberal, a bíblia não é literalmente a palavra de Deus, mas sim o testemunho ou
o registro, totalmente humano, da experiência que um povo ou indivíduos tiveram
com o sagrado. Para um liberal, a experiência com o sagrado é mediada por
pessoas inseridas numa cultura específica, sendo assim, é a cultura (com seus
conceitos e pré-conceitos) quem vai oferecer uma forma específica à experiência
religiosa, que é universal. Sendo assim, os livros sagrados de outras tradições
religiosas são tão inspirados divinamente quanto a bíblia, apenas situam-se em
culturas diferentes. Para um liberal, a bíblia consiste num tratado de moral e
Jesus é um professor de moral. Todos os milagres são alegorias destinadas a
transmitir valores morais.
A
tarefa de um teólogo liberal (que não presta mais serviços a um império, mas à
ciência) consiste em reinterpretar esses mitos, tendo como referência a cultura
de onde vieram, traduzindo aos homens de hoje seu valor moral universal.
Contudo,
o liberalismo ainda constitui a cristandade, aliada a revolução científica e a
promoção das liberdades individuais. O protestantismo liberal e progressista
sempre esteve vinculado ao poder político, particularmente na Inglaterra. Houve
uma reação a isso: grupos que ficaram conhecidos como pietistas ou
separatistas, que defendiam a separação entre igreja e Estado, bem como uma
“purificação” moral da igreja. No início foram duramente perseguidos, em
seguida, enviados às treze colônias americanas, junto com uma infinidade de
criminosos, a fim de colonizar as novas terras sem interferirem nos interesses
do Estado Inglês. Na América eles ficaram conhecidos como puritanos.
O
puritanismo se caracteriza por restabelecer o ortodoxismo teológico no âmbito
privado, da consciência. Isso de deve ao conceito de pecado ser a principal
temática na época para sermões e na teologia. Fruto de uma interpretação dos
tempos que se estavam vivendo como ações de um Deus punitivo: epidemias, fome e
doenças contagiosas devastaram a Europa. Os impactos psicológicos dessas experiências,
foram transmitidas às gerações, principalmente na religiosidade. Que chegou à
América. Tal perspectiva era ignorada pelo protestantismo luterano. Essa
influência deve-se principalmente à Calvino.
Calvino,
tal como os teólogos católicos, fazia do pecado um conceito jurídico (ele era
advogado por formação, não teólogo). Sendo assim, o pecado representava uma
inconformidade a certos padrões legais divinos. Nessas condições não havia como
evitar o moralismo. Lutero compreendia a questão de forma bem mais amena: o
pecado não consiste numa questão jurídica, do ato, mas existencial, do sujeito,
inerente à condição humana. Contudo, isso não representaria a perdição
absoluta. Pela fé Cristo torna-se o tutor do pecador, mas o pecador não deixa
de ser quem é. Não há moralismo em Lutero.
Acontece
que, sem levar em conta ás missões católicas presentes desde o descobrimento
(fruto da contra-reforma), nós brasileiros fomos “evangelizados” por puritanos.
A visão que temos do cristianismo é oriunda deles. O proselitismo torna-se uma
outra questão nesse processo. Entre os puritanos a salvação não é pessoal, mas
coletiva. A salvação do indivíduo depende da salvação do grupo, mediada pelo
moralismo. O puritanismo é fundamentalmente imperialista. A salvação coletiva
está fortemente vinculada a interferência da religião na vigilância da moral
pública, isto significa, interdições ao interesse do Estado a legalização do
aborto, prostituição, uso legal das drogas, casamento civil entre pessoas do
mesmo sexo e etc. Para que essa interferência seja feita, horários na TV aberta
são comprados para doutrinação moral, assim como, torna-se comum a participação
de religiosos na política.
Mais
uma vez insisto: isso em nada se parece com o cristianismo. Pelo contrário, é
sua oposição. Para algumas pessoas o cristianismo está tão diluído na
cristandade que torna-se impossível uma distinção. Para algumas pessoas os
ensinamentos de Jesus estão tão sedimentado em outras tradições sintetizadas na
bíblia que sua doutrina é considerada perdida para sempre. Até onde se sabe,
Jesus não escreveu nada, e é muito provável que não tenha deixado nada escrito.
Depois de sua passagem pela historia, a partir do segundo século, surgiram
inúmeros movimentos, que embora muito diferentes entre si, definiam-se como
seguidores de Jesus.
Além
do mais, o problema “O Que é o Cristianismo?” não é novo, já era pré-existente
no primeiro século de nossa era, isso porque nem mesmos os discípulos sabiam
quem de fato Jesus era. É justamente desse problema que São Paulo trata em sua
teologia. O cristianismo não se trata efetivamente num conjunto de dogmas. Não
se trata na fé em conceitos. O cristianismo consiste na fé numa pessoa, Jesus
Cristo. E mais ainda: que essa pessoa, diferente de todas as outras, venceu a
morte. Esse é um ponto tão central dentro do Novo Testamento que todos os
relatos, embora divergentes em vários pontos, concordam na realidade da
ressurreição literal de Jesus.
Duas
colocações são necessárias sobre esse assunto: sabemos que a religião responde
a certas necessidades. Que a ressurreição, por ser tão importante para os
cristãos, responde ao problema irremediável da morte. O grande problema para o
cristianismo não é a existência de Deus, ou do pecado, do céu ou do inferno. É
a morte! Um problema concreto. A eternidade da alma, particularmente sugere não
a fuga de uma vida à outra, mas sim de que a vida é tão boa que não precisa
acabar. A mesma vida. Que a felicidade não está além, mas no aquém, pois
existir representa essa felicidade. A grande vantagem da eternidade é a
duração. Outra coisa bem diferente da vida, consiste nas circunstâncias em que
essa vida está situada: cultura, religião, economia, família e etc. Para a
maioria dos cristãos, a estrutura pela qual a vida está sendo sustentada não é
boa. Pelo contrário, é tão ruim que não mudará para melhor nunca. Que por conta
disso o mundo irá de mal a pior. Tanto que, caso exista vida após a morte, não
existe estimativa de voltar novamente para esse mundo. É por isso que a grande
maioria dos cristãos ocidentais mais ortodoxos não acreditam na reencarnação. Isso
respondeu a necessidade psicológica dos cristãos falarem do céu. Onde a vida
continua em circunstâncias novas, melhores.
Outra
questão importante, é que objetivamente falando, mortos não ressuscitam. Sendo
assim, para qualquer pessoa de bom senso, crer na ressurreição de um homem com
pelo menos três dias de morto é um absurdo. Para o mundo helênico, antes da cristianização,
também. Isso nos permite compreender que antes da institucionalização, nem
mesmo uma ideologia o cristianismo representava, quanto mais uma religião. Um
movimento de párias, isto sim, que no império representava um número
inexpressivo e sem importância significativa. Um movimento destinado à
extinção. Se Jesus não ressuscitou, não há nada que justifique a sobrevivência
de um grupo assim. Se o corpo foi roubado da tumba pelos apóstolos e depois
espalhada a notícia de sua ressurreição, não há nada que justifique o fato de
muitos desses mesmos apóstolos terem sido mártires. Afinal, quem morreria
consciente por uma mentira?