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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Carta a Um Jovem Budista



Amigo,

Assumir em minha identidade o título de “cristão” consiste em sustentar aos olhos de muitas pessoas uma história. Para alguns, idealista e poética, para outros, materialista e maléfica. Aqui reside toda a ambigüidade que o termo socialmente indica, o que para mim é perfeitamente compreensível.

O cristianismo possui uma história, e conhecê-la é de certo modo reveladora. Nesse aspecto, o tempo no seminário, aliado a um permanente questionamento da minha fé, tornaram-se muito frutíferos.  A natureza da história do cristianismo nos convida a entender que nada ou muito pouco dos ideais propostos por Jesus correspondem hoje ao que entendemos como cristianismo. Que a bíblia sofreu uma série de adulterações textuais, sem falar nos problemas inatos do texto devido a sua antiguidade e dificuldade de transmissão ao longo da história. Que por toda essa dificuldade torna-se impossível hoje compreender o que Jesus de fato fez e ensinou. Isso parece bem desanimador. Por outro lado, consiste numa das primeiras descobertas que um estudante de teologia faz num bom seminário. O choque é inevitável. Todavia, essas mesmas descobertas não foram feitas por pessoas alheias a religião, particularmente ao cristianismo. Adaptações e revisões foram feitas diante dessa nova realidade. É inegável que o cristianismo vem sofrendo uma série de adaptações e revisões desde sua origem. Essa transformação chamamos de cristandade.

A cristandade não é o cristianismo. Minha intenção com esta carta é propor uma reflexão sobre essa diferença, até mesmo oposição entre elas e como particularmente entendo o cristianismo e sua interferência em minha ética pessoal. Falarei pouco sobre o budismo: a questão aqui não consiste em justificar motivos pelos quais não sou budista, mas sim, porque sou cristão.

A cristandade consiste na transformação do cristianismo em instrumento de dominação política, econômica, social e moral, ou seja, consiste em fazer do cristianismo um instrumento de poder. Quando isso aconteceu, o cristianismo foi reduzido a uma dogmática que atendia aos interesses do império romano, seu conceito de verdade tornou-se idealista e unilateral. A justificativa para isso estava na formação de um canôn, uma coleção de livros sagrados, e posteriormente numa hierarquia religiosa.

O que é a bíblia? A resposta a essa pergunta definiu a forma de interpretá-la como um todo. Foi a cristandade a responsável em concebê-la, e os textos que a compõe, particularmente o Novo Testamento, foram escritos para comunidades culturalmente tão diferentes entre si, a fim de resolver problemas específicos nessas comunidades, envolvendo questões morais ou a própria fé em Jesus como messias, que seus escritores sequer tinham a intenção de escreverem um tratado universal para os cristãos de todos os tempos. Os textos são situacionais. A idéia de reunir esses textos culturalmente díspares trouxe sérios problemas, seja entre as comunidades de onde esses textos vieram, seja para a formulação de uma dogmática, ou seja, de uma doutrina oficial (e política) do que seria o cristianismo de Jesus.

Para que você tenha uma idéia: Jesus é o messias. Disso todos os evangelistas concordam. Mas cada um possui uma idéia diferente de messias: rei de Israel (Mateus), o cordeiro de Deus que pagaria pelos pecados do povo (Marcos), o “filho do homem”, o messias tal como descrito pelo profeta Daniel (Lucas) ou o próprio Deus em pessoa (João). A teologia nasceu a fim de resolver esse problema. Os teólogos eram em sua maioria antigos filósofos “convertidos” ao cristianismo do imperador, que eram pagos para que de alguma maneira harmonizassem esses textos tão diferentes entre si. Eles se utilizaram da filosofia grega para isso. O cristianismo passa por um refinamento intelectual (pois antes, tratava-se de uma religião minoritária destinada a párias sociais) e sob a tutela da teologia e do imperador ganha status social.

Muita coisa do que compreendemos como cristianismo e sua visão de Deus nasceu nesse período: O Deus simultaneamente onipotente, onipresente e onisciente, a trindade, o sacrifício expiatório e etc. O império se torna cristão, a teologia, que justifica o poder do imperador torna-se a mãe de todas as ciências e a bíblia, torna-se a palavra literal de Deus. Particularmente compreendo que debater essas questões como se fossem inatas ao cristianismo é tolice. A bíblia é a palavra literal de Deus e a interpretação dos teólogos é a correta interpretação dessa palavra. Contestar essa interpretação não era considerado o mesmo que contestar os teólogos ou o imperador. Era o mesmo que contestar Deus.

A cristandade nasceu como simbiose da cultura Greco-romana e do cristianismo transformado em instrumento de dominação política. A cristandade marcou o início da civilização ocidental, inserindo na cultura um calendário “cristão”, uma legislação civil “cristã” e etc. Qualquer outro tipo de poder, estranho ao poder dominante, era facilmente reprimido: surgem as cruzadas, inquisição e uma série de guerras religiosas. A reforma protestante mudou um pouco, mas não completamente essa situação: a bíblia, do latim foi traduzida para a língua do povo. A autoridade sobre a bíblia fora destituída de uma elite. Acontece que a maior parte da população na Alemanha, na época era analfabeta e muito pobre. Uma bíblia era muita cara. Os primeiros beneficiários dessa iniciativa da reforma foram os nobres e os intelectuais insatisfeitos com o poder da igreja, e que por isso apoiavam Lutero. A bíblia passa a ser lida entre esses primeiros partidários da reforma (eruditos) não como palavra literal de Deus, mas como literatura e com interesse científico. Muitas descobertas interessantes partem daí: incoerências textuais, cronológicas e históricas tornam-se evidentes. O valor espiritual da bíblia estaria fora dessas questões.

Surge uma segunda escola da interpretação bíblica, oposta ao ortodoxismo. Chamava-se liberalismo. Essa corrente se caracteriza pelo estudo crítico do texto bíblico, sem desmerecer seu valor espiritual que é reduzido a uma moral. Para um liberal, a bíblia não é literalmente a palavra de Deus, mas sim o testemunho ou o registro, totalmente humano, da experiência que um povo ou indivíduos tiveram com o sagrado. Para um liberal, a experiência com o sagrado é mediada por pessoas inseridas numa cultura específica, sendo assim, é a cultura (com seus conceitos e pré-conceitos) quem vai oferecer uma forma específica à experiência religiosa, que é universal. Sendo assim, os livros sagrados de outras tradições religiosas são tão inspirados divinamente quanto a bíblia, apenas situam-se em culturas diferentes. Para um liberal, a bíblia consiste num tratado de moral e Jesus é um professor de moral. Todos os milagres são alegorias destinadas a transmitir valores morais.

A tarefa de um teólogo liberal (que não presta mais serviços a um império, mas à ciência) consiste em reinterpretar esses mitos, tendo como referência a cultura de onde vieram, traduzindo aos homens de hoje seu valor moral universal.

Contudo, o liberalismo ainda constitui a cristandade, aliada a revolução científica e a promoção das liberdades individuais. O protestantismo liberal e progressista sempre esteve vinculado ao poder político, particularmente na Inglaterra. Houve uma reação a isso: grupos que ficaram conhecidos como pietistas ou separatistas, que defendiam a separação entre igreja e Estado, bem como uma “purificação” moral da igreja. No início foram duramente perseguidos, em seguida, enviados às treze colônias americanas, junto com uma infinidade de criminosos, a fim de colonizar as novas terras sem interferirem nos interesses do Estado Inglês. Na América eles ficaram conhecidos como puritanos.

O puritanismo se caracteriza por restabelecer o ortodoxismo teológico no âmbito privado, da consciência. Isso de deve ao conceito de pecado ser a principal temática na época para sermões e na teologia. Fruto de uma interpretação dos tempos que se estavam vivendo como ações de um Deus punitivo: epidemias, fome e doenças contagiosas devastaram a Europa. Os impactos psicológicos dessas experiências, foram transmitidas às gerações, principalmente na religiosidade. Que chegou à América. Tal perspectiva era ignorada pelo protestantismo luterano. Essa influência deve-se principalmente à Calvino.

Calvino, tal como os teólogos católicos, fazia do pecado um conceito jurídico (ele era advogado por formação, não teólogo). Sendo assim, o pecado representava uma inconformidade a certos padrões legais divinos. Nessas condições não havia como evitar o moralismo. Lutero compreendia a questão de forma bem mais amena: o pecado não consiste numa questão jurídica, do ato, mas existencial, do sujeito, inerente à condição humana. Contudo, isso não representaria a perdição absoluta. Pela fé Cristo torna-se o tutor do pecador, mas o pecador não deixa de ser quem é. Não há moralismo em Lutero.

Acontece que, sem levar em conta ás missões católicas presentes desde o descobrimento (fruto da contra-reforma), nós brasileiros fomos “evangelizados” por puritanos. A visão que temos do cristianismo é oriunda deles. O proselitismo torna-se uma outra questão nesse processo. Entre os puritanos a salvação não é pessoal, mas coletiva. A salvação do indivíduo depende da salvação do grupo, mediada pelo moralismo. O puritanismo é fundamentalmente imperialista. A salvação coletiva está fortemente vinculada a interferência da religião na vigilância da moral pública, isto significa, interdições ao interesse do Estado a legalização do aborto, prostituição, uso legal das drogas, casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e etc. Para que essa interferência seja feita, horários na TV aberta são comprados para doutrinação moral, assim como, torna-se comum a participação de religiosos na política.

Mais uma vez insisto: isso em nada se parece com o cristianismo. Pelo contrário, é sua oposição. Para algumas pessoas o cristianismo está tão diluído na cristandade que torna-se impossível uma distinção. Para algumas pessoas os ensinamentos de Jesus estão tão sedimentado em outras tradições sintetizadas na bíblia que sua doutrina é considerada perdida para sempre. Até onde se sabe, Jesus não escreveu nada, e é muito provável que não tenha deixado nada escrito. Depois de sua passagem pela historia, a partir do segundo século, surgiram inúmeros movimentos, que embora muito diferentes entre si, definiam-se como seguidores de Jesus.

Além do mais, o problema “O Que é o Cristianismo?” não é novo, já era pré-existente no primeiro século de nossa era, isso porque nem mesmos os discípulos sabiam quem de fato Jesus era. É justamente desse problema que São Paulo trata em sua teologia. O cristianismo não se trata efetivamente num conjunto de dogmas. Não se trata na fé em conceitos. O cristianismo consiste na fé numa pessoa, Jesus Cristo. E mais ainda: que essa pessoa, diferente de todas as outras, venceu a morte. Esse é um ponto tão central dentro do Novo Testamento que todos os relatos, embora divergentes em vários pontos, concordam na realidade da ressurreição literal de Jesus.

Duas colocações são necessárias sobre esse assunto: sabemos que a religião responde a certas necessidades. Que a ressurreição, por ser tão importante para os cristãos, responde ao problema irremediável da morte. O grande problema para o cristianismo não é a existência de Deus, ou do pecado, do céu ou do inferno. É a morte! Um problema concreto. A eternidade da alma, particularmente sugere não a fuga de uma vida à outra, mas sim de que a vida é tão boa que não precisa acabar. A mesma vida. Que a felicidade não está além, mas no aquém, pois existir representa essa felicidade. A grande vantagem da eternidade é a duração. Outra coisa bem diferente da vida, consiste nas circunstâncias em que essa vida está situada: cultura, religião, economia, família e etc. Para a maioria dos cristãos, a estrutura pela qual a vida está sendo sustentada não é boa. Pelo contrário, é tão ruim que não mudará para melhor nunca. Que por conta disso o mundo irá de mal a pior. Tanto que, caso exista vida após a morte, não existe estimativa de voltar novamente para esse mundo. É por isso que a grande maioria dos cristãos ocidentais mais ortodoxos não acreditam na reencarnação. Isso respondeu a necessidade psicológica dos cristãos falarem do céu. Onde a vida continua em circunstâncias novas, melhores.

Outra questão importante, é que objetivamente falando, mortos não ressuscitam. Sendo assim, para qualquer pessoa de bom senso, crer na ressurreição de um homem com pelo menos três dias de morto é um absurdo. Para o mundo helênico, antes da cristianização, também. Isso nos permite compreender que antes da institucionalização, nem mesmo uma ideologia o cristianismo representava, quanto mais uma religião. Um movimento de párias, isto sim, que no império representava um número inexpressivo e sem importância significativa. Um movimento destinado à extinção. Se Jesus não ressuscitou, não há nada que justifique a sobrevivência de um grupo assim. Se o corpo foi roubado da tumba pelos apóstolos e depois espalhada a notícia de sua ressurreição, não há nada que justifique o fato de muitos desses mesmos apóstolos terem sido mártires. Afinal, quem morreria consciente por uma mentira?

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Jesus Lava os Pés dos Discípulos



† Leitura devocional: Jo. 13.1-20

Ele sabia.

 De onde veio e para que veio.

Sabia que nada escaparia das suas mãos. Nem mesmo o poder da morte. Sabia também, que para isso acontecer, sangraria. Seria escarnecido, humilhado, açoitado e cuspido, ridicularizado publicamente. Esquecido por seus amigos.

Ele sabia.

E mesmo assim, em sua última refeição, não deixou de ser quem era, o mais humilde dos homens. Ele se ajoelha, e lava os pés dos seus discípulos. Os mesmos que diante da cruz o esqueceriam.

Mas do que humildade, o que havia entre Jesus e seus discípulos não se tratava de uma simples relação de poder, mas de amor. O poder mede, controla, nivela, separa pessoas, as classifica, as define. O amor não, pois o amor é o avesso do poder, pois não exige nada em troca do que faz. Ele amou, e não esperava ser amado em troca. Mas sabemos que além de Jesus ninguém mais é assim. O que nos surpreende, pois qualquer instituição ou pessoa que se defina como herdeira do seu legado, se compromete mais com o seu amor do que com o poder. E todo aquele que se compromete com o poder, se compromete não com Jesus Cristo, mas com aquele que possui em suas mãos todos os reinos da terra.   

sábado, 19 de janeiro de 2013

"A Vida é Bela" de Roberto Benini




O amor é mais forte do que a morte, tanto que chega a zombar dela, assim como de uma infinidade de sistemas políticos de promoção a essa morte. Mas não sem certa dose de melancolia. Esse talvez seja o que há de mais intenso em Roberto Benini em seu filme “A Vida é Bela”. Tudo é muito expressivo: um homem sem valor, encontra o valor que tem com a mulher que ama. Com o tempo, cultivam um lar e um filho pequeno. Época da guerra e ele e o menino são judeus. Vão parar no campos de concentração. Ela separada dos dois, exige ir para o campo também, embora não fosse judia. O final é emocionante.

Cristianismo e Cristandades



Embora assuste a muita gente, o cristianismo nunca pretendeu ascensão social. Sempre se aproximou das párias, dos iletrados, infratores, pecadores, injustiçados e perseguidos. Sempre esteve ao lado deles. E por isso, em sua história, foi considerado um movimento sem expressão. Com a helenização do mundo antigo, isso tornou-se evidente: a fé na ressurreição de um judeu não se tratava de um discurso válido num mundo cada vez mais racional. O cristianismo não se tratava na defesa de uma ideologia. Sem expressão social o discurso cristão tratava-se de um discurso sem credibilidade, portanto, ignorado, contraditado, ridicularizado, esquecido, perseguido, pois reagia violentamente contra a noção cultural que o mundo antigo tinha de verdade e bondade. Reagia contra aquilo que o mundo antigo entendia como as coisas são ou deveriam ser. Não se preocupem com isso. Esse mundo antigo, de tão antigo, continua se repetindo. Pensem bem: você também não acreditaria se alguém pregasse a ressurreição de um Deus, que ao invés de Jesus, tivesse outro nome. É o mais racional a se fazer. Acontece que o cristianismo não se trata de uma doutrina filosófica ou teoria bem construída sobre Deus. O cristianismo trata-se de uma experiência com esse Deus.

Por outro lado, oposto ao cristianismo está a cristandade, que consiste no cristianismo descaracterizado por interesses políticos e econômicos. Ele está interessado em ascensão social, e para isso, ocupa o lugar dos poderosos, faz amizade com políticos e assume um discurso de moralidade. O discurso promovido pela cristandade, tendo em vista os interesses das massas, é capaz de sujeitar até os poderes do Estado, ou então o seu oposto, de deixar-se submeter aos interesses do Estado. A cristandade assume o discurso da racionalidade, que não é universal, mas localizada no tempo, e com ela, nasce a teologia, a escolástica, a retórica, e sua proposta em sistematizar o cristianismo e torná-lo culturalmente tolerável. Com o tempo, uma nova racionalidade contesta a outra, e de tolerável, a cristandade se aproxima hoje, com a racionalidade científica, de um novo absurdo. Mas confundiram a cristandade com o cristianismo, sendo assim, o absurdo que é a cristandade, tornou-se a chave hermenêutica para se interpretar o absurdum que é o cristianismo. Não espere respeito de um mundo laico. Ele não terá pena de você. O cristianismo não assume o discurso da moralidade ou da racionalidade, mas sim da paixão. E alguns cristãos, tentando ainda algo que os convença a permanecerem de alguma forma justificável em sua fé, enlouquecerão.  

Abraão, Um Pagão?



“... quando o áugere cumpre a sua tarefa e declara que o deus reclama o sacrifício de uma jovem, o pai deve então, heroicamente, efetuar tal sacrifício. Ocultará com nobreza a sua dor, apesar do desejo de ser o homem insignificante que ousa chorar, e não o rei obrigado a agir como tal. E se, na sua solidão, o coração se lhe enche de dor, não tendo entre o seu povo senão três confidentes, em breve todos os súditos conhecerão o seu infortúnio e a nobre ação de consentir, no interesse geral, o sacrifício de sua virgem e amada filha (...). A diferença que separa o herói trágico de Abraão salta aos olhos. O primeiro continua ainda na esfera moral (...). Muito diferente é o caso de Abraão. Por meio do seu ato ultrapassou todo estádio moral (...). Não age para salvar um povo, nem para defender a idéia de Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados. Se pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto Abraão. Assim, enquanto o herói é grande pela sua virtude moral, Abraão é-o por uma virtude estritamente pessoal.  (Soren Kierkegaard em “Temor e Tremor”).


É difícil deixar-se convencer por Abraão, pois os deuses de outros povos, cada um à sua maneira, exigiam jovens em sacrifícios. Sendo assim, torna-se difícil distingui-lo de um pagão, de um adorador de ídolos, de uma ficção. Em que difere Abraão de um simples camponês grego que igualmente entrega sua única filha para ser sacrificada aos deuses? Os deuses exigem virgens, e em troca, garantem a proteção da cidade contra os desastres naturais e guerras. Garantem boas colheitas e rebanhos cada vez maiores. O pai, ao entregar sua única filha ao sacerdote, embora a ame com todas as suas forças, com o seu coração partido, prefere desistir dela pois sabe para que ela está sendo sacrificada. As colheitas e os rebanhos, assim como a paz entre os vizinhos precisam continuar. Seu gesto de desapego será visto como heroísmo e será recompensado por isso. Ele receberá homenagens e serão escritas dúzias de canções e livros sobre seu feito. Mas ele ama sua filha, e por isso prefere suportar em silêncio, até o fim de seus dias a dor em perdê-la. Mas ele sabe porque a perdeu e os efeitos disso.

Abraão não sabe de coisa alguma. Deus lhe exige de volta o que lhe deu. Seu ato não defenderá o bem de quem seja, nem mesmo o seu próprio bem. Sendo assim, nada pode justificá-lo. Ele não será honrado ou terá seu nome louvado entre o povo. Terá de suportar em silêncio sua dor. Não, Abraão não se iguala aos homens de seu tempo. Foi-lhe exigido superá-los. Mas não sem dor, sem angústia, sem solidão. Seu ato de fé o tornava um homem singular, como nenhum outro, em toda a história. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O Preço da Liberdade


Eis o Preço da Liberdade, 
Da escuridão da alma, 
dos poucos amigos.
De encontrar-se no mundo profundamente só. 

Eis o preço da liberdade, 
Sem glória alguma, 
sem qualquer tipo de honra ou nome.
Ausente dos nomes que estampam os livros de história. 

Esquecido no túmulo.
Jamais lembrado.
Para sempre adormecido.
Mas afinal, qual seria a importância disso?

Eis o preço da liberdade,
e esse preço consiste em morrer,
como se não tivesse nascido.
Viver como se jamais morresse.
E não ser, para quem quer que seja, coisa alguma que mereça importância

domingo, 6 de janeiro de 2013

Moriah


Sabemos bem até onde pode ir a natureza humana: homens maus podem matar e para eles não há a mínima diferença de quem seja a vítima, contanto que isso os agrade, os permita algum prazer, mesmo que entre essas vítimas esteja o próprio filho. Homens bons também podem matar, desses que não ousariam agredir um inseto ou sequer alterar o tom de voz contra alguém. Basta-lhes um acesso descontrolado de fúria e são capazes de sacudir o mundo. Contudo, quando a tempestade passa, a ira cede lugar ao remorso e talvez não há mais nada a fazer. Não há o que concertar. Atos assim podem envolver a morte de quem se ama. Embora o amasse, ele levou seu filho à Moriah, e em silêncio seguia o seu caminho. Mas como dizer ao seu único filho que Deus o exigia em sacrifício? Como dizer ao filho, quem embora seria ele, seu pai, o seu carrasco, o amava? Como obedecer a Deus e imolar o filho seria o mais correto a se fazer do que preservá-lo com vida? Isso não coloca o patriarca na tão famosa lista de homens virtuosos que merecem ser imitados. Isso não coloca o patriarca entre os santos e piedosos, mas entre os loucos e delinqüentes. Enquanto prossegue até Moriah nada pode justificá-lo, pois até mesmo Deus está emudecido e não ousa falar até que ele, com a faca em punho, a erga aos céus. Que espécie de homem é Abraão? Bom ou mau? Impossível defini-lo até que tenha realizado seu ato. Mas ele não realiza! No caminho até Moriah Abraão está moralmente suspenso. E nesse caminho, todos nós estamos com ele. A vida constitui o caminho até Moriah. E se tudo afinal não passar de uma prova? E se no fim de tudo, um anjo nos impeça de entregarmos a Deus o que mais amamos? Mas e se ele não impedir? Enquanto isso, prosseguimos até Moriah. 

Ecce Homo



Passado algum tempo, Deus pôs Abraão à prova, dizendo-lhe: "Abraão! " Ele respondeu: "Eis-me aqui".

Então disse Deus: "Tome seu filho, seu único filho, Isaque, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto num dos montes que lhe indicarei". 
Gênesis 22:1-2


Diferente dos gregos, Abraão não é um filósofo. Não aprendeu lógica ou retórica. Diferente dos homens do nosso tempo, ele não é um homem de ciência. Não estudou física, matemática e não teve qualquer noção de biologia ou química. Longe do passado, cujo domínio era exercido pela filosofia, o pensamento sistemático, bem planejado e ordenado, assim como também, longe do futuro, cujo domínio exercido pelas ciências e seu método rigoroso de reprodução em laboratório das leis da natureza, Abraão consiste num tipo de homem singular: sem passado ou futuro, o presente é o seu tempo. O presente é o tempo que não o situa em tempo algum. Ele está na eternidade, e é pela eternidade que ele será engrandecido. Kierkegaard se propõe a dissertar sobre quem Abraão é, está tão longe do discurso filosófico e do método científico, que para uma e outra, no mínimo ele seria objeto de riso, a não ser por um fato: ele leva o seu único filho ao monte Moriah para sacrificá-lo ao seu Deus. Nesse momento, seja entre filósofos e cientistas, ou até mesmo, entre os bondosos pais de família que amam seus filhos e desejam a eles o melhor que o mundo os pode conceder, Abraão não pode ser visto com bons olhos: trata-se de um homem sem coração que prevê no futuro possíveis rivalidades ou que no mínimo enlouqueceu. E disso se trata todo a drama de sua história. A história de um homem que guarda um segredo e cujo ato não pode justificar, e que será engrandecido como pai de uma nação, para sempre, depois desse ato, pois afinal, ele não sabia que tudo não passava de uma prova. Imagine o impacto que seria, a ousadia de alguém que arriscaria viver como ele?!

sábado, 5 de janeiro de 2013

O Amor é a Porta do Paraíso



Recentemente terminei de ler o livro de Lisa Miller Paraíso: nossa eterna fascinação com a pós-vida (Ed. Nossa Cultura/ 2010) onde a autora procura compreender a evolução histórica da idéia de paraíso nas religiões monoteístas, desde o contexto por onde essas teologias surgiram, até os dias atuais onde essas teologias oferecem apenas o ponto de partida para uma infinidade de insights individuais sobre o que nos espera depois da morte. O livro deixa evidente a preocupação que o homem contemporâneo tem com a sua felicidade. Quase uma obsessão. Não apenas nesta vida, mas, principalmente na próxima. Isso acontece pela constatação de que a busca pela felicidade individual está por si mesma condenada ao fracasso diante de tantos impedimentos, principalmente o da competição entre os homens, onde a felicidade de um, determina a infelicidade do outro. A idéia do paraíso constituiria, portanto, a vida da plenitude do desejo: cristãos vagam por entre ruas de ouro e outras pedras preciosas, mulçumanos têm a disposição dúzias de virgens (embora alguns teólogos do Islã contestem o termo houris, virgem em árabe, como específico a escravas sexuais) e judeus estarão reunidos ao seu povo.

Muito embora os textos sagrados dessas religiões contenham imagens desse tipo, particularmente, não compreendo o paraíso como o lugar da plenitude do desejo individual como uma questão central, dogmática. O paraíso não constitui apenas o lugar da plenitude do desejo, pois nesse caso, insistiriam nossos estudiosos em religião, sua causa seria inteiramente material, idealização de um desejo infantil e reprimido por felicidade. O paraíso também é o lugar do trono de Deus, antes, segundo a tradição judaica, inacessível aos homens. O paraíso constitui o lugar daquele que encontrou em Deus a plenitude do seu desejo. É por isso que o martírio é compreendido como acesso direto ao paraíso: o mártir é aquele que faz de Deus a plenitude do seu desejo.
Outra questão que o livro levanta indiretamente é a memória. Atualmente a crença no paraíso está relacionada ao contato permanente com as pessoas que amamos: pai, mãe, irmãos, a família de uma forma geral. Um tipo de teologia bastante defendida pelos mórmons, onde não apenas os laços de sangue são defendidos como perpétuos, mas também a memória. Teremos memória na eternidade?
A memória constitui a individualidade. A teologia bíblica insiste na perpetuidade dessa individualidade, logo, da memória. Jesus ressuscitou com memória, sabia quem era e quem eram seus discípulos (Cf. Lc. 24.36-51). Os mártires exigem justiça diante do trono de Deus a respeito de tudo o que sofreram e do testemunho que deram (Cf. Ap. 6.9-10). Por outro lado, a perpetuidade da memória colabora (e muito) para a crença na perpetuidade dos laços afetivos, o que o próprio Jesus condenou em seu debate com os saduceus (Cf. Mt. 22. 23-33). Como é possível a perpetuidade da memória sem a perpetuidade dos laços afetivos? Uma questão não tão fácil de ser respondida. O rico no hades, segundo uma das parábolas mais conhecidas de Jesus, sabe quem é, quem são seus irmãos e seu pai. Ele tem voz ativa no texto em seu diálogo com Abraão (Cf. Lc. 16.19-31). Lázaro por outro lado é consolado no seio do patriarca (a TEB traduz o texto colocando Lázaro ao lado e não no seio de Abraão). Lázaro não interage com o rico ou se pronuncia sobre o assunto. Abraão é o mediador da conversa e deixa explícito a impossibilidade de interação entre os dois. Lázaro não tem voz no texto.
A ausência de laços afetivos na eternidade também coloca algumas questões importantes: define o amor como o bem que nasce do constante risco da perda. O amor a Deus e ao próximo, ao amigo e ao inimigo nascem do constante risco que temos em perdê-los eternamente. Daí a urgência em amar. Porque a morte irá extinguir eternamente nossas formas convencionais de nos relacionarmos. Embora limitado, o amor concede aos nossos relacionamentos provisórios sua importância na temporalidade. Sendo assim, acredito que uma parte da nossa individualidade, logo, de nossa memória, particularmente, a mesma envolvida na forma como moldamos culturalmente nossos relacionamentos hoje, se extinguirá para sempre. A mesma que nos separa e nos divide. A mesma que nos faz pensar em nossos desejos individuais. Sendo assim, não posso compreender o paraíso como o lugar da plenitude do desejo individual, mas sim, do desejo coletivo. Onde todos querem a mesma coisa. Onde a “pureza de coração é querer uma só coisa” conforme escreveu Soren Kierkegaard num de seus discursos edificantes. E quem descobriu isso, descobriu o segredo do paraíso.