Capítulo Dois
Acho que estou
enlouquecendo ou sonhando. Na melhor das hipóteses, talvez eu esteja morto.
Entretanto, o que de fato me angústia é justamente não ter certeza alguma.
Curioso como as
pessoas se interagem por aqui. Elas não falam. Não se comunicam. Não há
telefones, nem mesmo internet ou livros. Pensei: - O sistema implodiu.
Aparentemente, todas sempre sabem o que fazer. Durante o dia, parecem máquinas,
à noite, demônios. Não se cansam, não sentem fome ou sede. Mas se divertem
intensamente de uma forma que para mim não existe outra maneira de definir do
que repulsiva. É estranho viver num mundo assim, onde o estremo caos reina
pacificamente com o mais absoluto silêncio. Onde a violência contra si mesmo é
uma diversão. Como se a vida não fosse mais suportável, mesmo sendo eterna.
Cada homem só
enxerga a si mesmo, e por isso, comete o equívoco de considerar-se sozinho no
mundo e incompreendido. Por aqui essa realidade é bem mais gritante: as pessoas
passam por mim e não me vêem. Elas não sabem que eu existo e simplesmente não
me conhecem. Parecem estar cegas, tateando, desesperados, a fim de evitar
caírem no abismo. Acontece que irremediavelmente esse abismo já nos encontrou.
O verdadeiro problema consiste em como vamos todos sair dele.
Cada homem só
enxerga a si mesmo: comunicar-se é inútil. Desapareceram os idiomas, as línguas
comuns. Tudo é mais simbólico, e por isso, mais silencioso. O menor dos ruídos
constitui uma agressão a individualidade do outro, é quase um crime. Um mundo
em silêncio! É como viver numa imensa biblioteca ou num cemitério.
Alguns homens
não suportariam.
Ele se jogou de
uma janela do vigésimo andar. Todas as costelas estavam quebradas e alguns
ossos expostos. Teve metade da face esmagada pelo concreto. Talvez, um caso
irrecuperável. Mas estava vivo. Um evento comum, por não ser o único. As ruas
estavam cheias de machas de sangue.
Não pensam. Não
expressam qualquer tipo de sentimento que consideraria natural. Toda forma de
espontaneidade se assemelha a brutalidade de um psicopata. São ausentes de
sentimento de qualquer espécie: medo ou remorso, nem mesmo alegria, apenas
impulso. Uma espécie de prazer difícil de definir. Não pensam, por aqui não há
pensamentos. Só corpo, impulso, desejo, conflito. Nada mais.
Gritei!
Com toda a força
e ar disponível em meus pulmões. Rapidamente fui cercado por uma multidão de
pessoas. A partir daquele momento eu era visto. E ouvido. O espanto foi
inevitável. Cada rosto, embora mudo, apenas expressava uma única inquietação:
- Vejam, um homem que fala. Mas o que ele
fala? Eram todos incapazes de discernir.
- Quem são
vocês? Onde estou? Eu não cansava de repetir.
Inúteis foram
todas as minhas tentativas. Embora não me respondesse palavra alguma, com um
olhar simpático, uma jovem parece me interpretar como um animal de estimação.
Os lábios da
bela jovem de cabelos cor de cobre abriam-se trêmulos. Ela falou comigo pela
primeira vez. Com lágrimas nos olhos. Não há outro meio de defini-la a não ser
como uma criança. Ela me olhou com estranheza, contudo, sentia que seus olhos
não eram os únicos. Escondidos, havia outros olhares, talvez milhares,
invisíveis, provocando em mim certo desconforto.
Não há
dicionários. Não há livro algum. Excluíram da língua comum palavras como
“sonho”, “onírico”, “abstrato”, assim como “Deus”, “divindade”, “céu”,
“inferno”, “anjo”, “demônio”. Não era uma simples coincidência. Deus não existe
num mundo que não sonha, e que por isso não tem esperança. Como falar sobre
Deus para pedras que pareciam homens? Achei minha tarefa impossível. Por um
segundo havia me esquecido que o lugar onde estava era impossível. Acabei por
mudar de idéia.
Imediatamente
sou imobilizado por dois homens. A última imagem que tenho antes de desmaiar
por conta dos socos e ponta-pés é o sorriso dela. Doce e inocente, contudo, com
um olhar frio e penetrante como se quisesse me matar, embora não pudesse.
Talvez, mesmo não sabendo ela queria.
Acordei. De
maneira estranha, meu primeiro pensamento foi em Deus. Baita ironia. Não sei se
tenho fé. Todavia, não sei se sei que não a tenho também. Lembrei-me de algumas
ponderações religiosas da juventude. Quando costumava conversar sozinho sobre a
possibilidade de existir algum sentido pra tudo, que pelo menos não fosse nada
como átomos ou genes:
“Deus. Que
transcende toda imagem, fala e definição. Deus e ao mesmo tempo o nada. Mas
essa nada inquieta a alma. Porque o nada? Nos faz perguntar “Porque?”. Deus. Um
pergunta ou uma resposta? Uma ferida no coração do homem que o faz gritar de
dor. E enquanto essa ferida continuar aberta, ela terá consciência de que
precisa de uma resposta, mais ainda, de que existe uma resposta, pois caso
contrário, o próprio ato de se procurar é inútil. Enquanto essa ferida
continuar aberta, continuará o homem a crer que é um ser eterno”.
No mundo onde
estou, os homens são eternos por fora, contudo, completamente mortos por
dentro. Não há dor dentro do peito, mas a carne é sensibilíssima. Tudo
constitui uma agressão aos sentidos: o ar, o som, qualquer mínimo toque. Não há
pergunta. Não há resposta. Não vale a pena procurar uma resposta. Não há a
eternidade de uma Deus que possa justificá-la. Não há nada o que justificar.
Tudo é permitido para um homem sem alma. Um homem inconsciente de ter uma alma.
Primeiro Capítulo Aqui: http://migre.me/8xq0S
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7 comentários:
muito legal, diogo. já começo a campanha pelo 3o capítulo. bjs.
Massa, mas acho que ainda tá muito etéreo. Podia equilibrar mais a ação real com as divagações.
Luis Felipe
Quero logo o 3º capítulo, muito boa história. Você escreve bem parecido com o KAFKA rs. SUCESSO !
Quero o 3º capítulo já!!! Parabéns Diogo, ótimo como sempre...
3ª capitulo , espero que acabe os desvaneios desse cara ...
Diogo , uma idéia para o livro , seria um bom quebra-cabeças , que somaria ao ar de misterio .... e despertaria uma visao atenta nos leitores , abraços
Uma excelente idéia!!!
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