À
Igreja Batista de Vila Norma,
Ao
Corpo Diaconal,
Ao
Pastor Paulo Rodrigues Lima.
S
|
audações
em Cristo!
Minha
ausência tem motivado uma série de suposições, dentre os quais se tornou
evidente algum esclarecimento a respeito. Reconheço que ultimamente, o desânimo
é a principal causa de tal ausência. Desejo aqui, tornarem públicas muitas
inquietações que visam esclarecer essa questão. Serei o menos teológico
possível, pois não tenho a intenção em desenvolver um debate, contudo, às vezes
isso será inevitável e tedioso. Por outro lado, simultaneamente, farei uma
retrospectiva sobre minha presença entre os irmãos e sobre como os
acontecimentos presentes estão vinculados, direta ou indiretamente a eles. Por
favor, peço que não tenham conclusões precipitadas antes do fim desta carta,
que em essência deve ser compreendida como uma convicção particular da fé
cristã, algo necessário a qualquer cristão[1].
Gostaria
de evidenciar, o que estou passando de forma alguma se relaciona a uma “crise
de fé”, pelo menos na forma como entenderíamos o termo de maneira convencional.
Crises desse tipo são oriundas da constatação sincera de que existe um abismo
tão grande entre Cristo e a cultura (nossa forma enquanto povo, de entender a
realidade a partir das ciências, filosofias, religiões ou qualquer outro
paradigma dominante) que ou Cristo é uma mentira cultural (sendo por isso parte
da cultura, relativo e “inventado” socialmente) ou é a cultura que se trata de
uma mentira espiritual (2ª Co. 4.4). A cultura consiste no esforço humano em
conhecer a verdade. Sendo a cultura uma mentira, nosso esforço em chegar à
verdade é enganoso e inútil. A verdade não pode vir de nós, vem de fora. Jesus
Cristo se torna a verdade quando tomamos consciência que todo o resto (isto é,
o que está fora de Jesus Cristo) é uma mentira.
Esse
tipo de constatação, quando ausente de outras convicções pode acalmar a
consciência de muitos cristãos imaturos, contudo, levando-os à intolerância no
que se refere a cultura (sobre isso desejo abordar posteriormente).
Esse
tipo de crise entre fé e cultura afetou-me quando eu tinha apenas quinze anos.
Fui educado como um assembléiano zeloso, moralista, e acima de tudo, vendo Deus
como um ser de tendências punitivas (ideologia oriunda de uma hierarquia
religiosa autoritária e manipuladora). Tal tendência, aliada ao meu
temperamento introspectivo, tímido e cortez, assim como a convivência com um
pai extremamente regulador, que vivia da censura ao meu comportamento enquanto
cristão (fundada basicamente numa exigência cada vez maior de obediência cega,
mesmo quando equivocada, a sua autoridade) produziram em mim uma melancolia
cada vez mais intensa e depressiva. Era comum nesses dias eu me trancar no
banheiro (único lugar possível para se ficar sozinho numa casa sempre cheia) e
ficar horas às lágrimas ao lado de uma bíblia, a fim de obter alguma palavra de
consolo. Curioso era perceber que nesses momentos de lágrimas secretas (pois
nunca gostei de chorar em público, apenas em raríssimos casos inevitáveis),
sentia que poderia me dirigir a Deus sem reserva alguma, diferente do que
acontecia na igreja, onde era preciso manter certa formalidade. Em cerca
ocasião,na época, uma senhora muito idosa procurou-me após o culto e disse:
“Você será um grande pastor, mas sofrerá muito pelo Cristo que você serve”. Se
ela apenas tivesse dito metade do que disse, é muito provável que hoje, eu
teria abandonado o evangelho.
A
consciência de que seguir a Jesus é sofrer por ele tem me acompanhado de forma
clara desde então. Como conseqüência, não consigo deixar de crer em Jesus
Cristo, embora muitas vezes, secretamente eu deseje isso. Não se trata porém,
de uma simples concepção intelectual. Sou prisioneiro de Deus, tal como
Jeremias (profeta a quem me identifico intensamente desde a infância), contudo,
não sei dizer, se entre outros prisioneiros de Deus eu poderia me comparar a
Bonhoeffer. Os presbiterianos definem essa experiência de “prisão” como a
própria evidência da predestinação,entretanto, pessoalmente, não tenho
interesse nesses assuntos. Enquanto minha fé permanece inabalável, é como se
Deus reconhecesse que não há a mínima necessidade para que se manifeste
objetivamente. Todavia, é nos momentos
de dúvida, onde é preciso uma decisão,
que Deus se manifesta, colocando em dúvida, não a minha fé, mas a minha própria
incredulidade. Hoje reconheço em minha primeira crise de fé, o impulso para que
buscasse uma comunidade cristã culturalmente mais maleável, onde a cultura da
bíblia estivesse separada da verdade da bíblia, e onde esta verdade estivesse
próxima da minha cultura. Esse foi o impulso existencial para que eu me
tornasse batista, recendo as bênçãos de minha mãe ao tomar tal decisão. Todas
as outras justificativas foram construções elaboradas ao longo do tempo.
Fazer
da Igreja Batista de Vila Norma a “Igreja da Família” é bem sugestivo, mas
pouco original: não é por acaso que boa parte da membresia seja constituída por
famílias. Outro fator importante é notar que muitas dessas famílias são
formadas dentro da igreja. Em meu coração, não pude deixar de concluir que
existe um propósito divino para isso, e que esse propósito consiste justamente
no fato de que Deus os quer ali. De que cada indivíduo não poderia estar em
lugar melhor para o seu crescimento pessoal. Contudo, esse propósito do indivíduo
na comunidade somente testifica-se com a formação de sua família nessa mesma
comunidade. Por essa razão, creio que o único lugar onde Deus exige de mim que
cresça, consiste onde constituirei minha família. Não creio ser a Igreja
Batista de Vila Norma esse lugar.
Mas,
e se de fato, o que Deus exige de mim é a solidão? Em mim não se trata de uma
indagação recente. A solidão constitui um peso que me acompanha desde a
infância. A princípio, através de uma personalidade melancólica e
introspectiva. Esse tipo de temperamento motivou em mim a criação de um mundo
interior, responsável inclusive por inferir em mim seriedade a respeito da
minha fé. Contudo, se interiormente há um mundo inteiro, exteriormente não
havia absolutamente nada. Não havia profundidade em meus relacionamentos
sociais. Como conseqüência, ao longo do tempo, produzi uma distância
não-intencional com as pessoas, que normalmente correspondiam com desprezo e
indiferença. Para os mais religiosos essa distância poderia apenas ser
interpretada como um tipo de santidade monástica (produto de nossa herança
puritana e farisaica, tal como o sacerdote da parábola que evita o homem
estirado à beira do caminho a fim manter sua aparente incorruptibilidade) ou
para as jovens cristãs solteiras, poderia ser facilmente interpretado como
insosso, incapaz de manter um relacionamento amoroso. A parábola do bom
samaritano convenceu-me particularmente da urgência em construir um universo
exterior onde existam pessoas e eu não esteja sozinho no universo. Para muitas
jovens cristãs a “santidade monástica” (no sentido positivo que ofereço ao
termo, meu espírito introspectivo) é incompatível com a possibilidade de uma
vida amorosa. Onde se leva em consideração a aparência (a vida amorosa dos
jovens) eu permaneço uma incógnita (por ser introspectivo e sem aparência
desejável). Durante muito tempo isto constituiu uma dor, hoje, desesperançado
quanto a tal possibilidade (pois infelizmente, na prática, um jovem mulher
cristã, possui os mesmos métodos para avaliar um pretendente que qualquer outra
jovem mulher, ou seja, sem qualquer critério cristão) me dedico à crítica a
tais valores corrompidos, sem contudo, apelar à moralismos.
Contudo,
e se de fato, o que Deus exige de mim seja a solidão? O celibato de muitos
profetas não foi um dom, foi uma imposição divina, justamente porque no futuro,
eles seriam mártires. Não deixando no mundo uma viúva e filhos órfãos. Se Deus
me exige a solidão, igualmente me exige o martírio. É por isso que o celibato
institucional constitui uma meia verdade. Não leva a sério às conseqüências
dessa escolha. Se Deus, de fato, me exige a solidão, não haveria qualquer
igreja em que me sentiria pleno, realizando o que de fato nasci para fazer.
Nesse caso, Deus exigiria de mim mais do que uma congregação local me exigiria.
A apatia torna-se, portanto, por conta da presente imobilidade, inevitável.
A
tarefa do teólogo, diferente da tarefa pastoral, não consiste em justificar o status quo do cristianismo
institucional. Sua preocupação é, a partir de um permanente questionamento,
entender para onde estamos indo com a igreja. A tarefa do teólogo é crítica, do
ministro porém, dogmática. O teólogo preocupa-se com o cristianismo em sua
dimensão global, o ministro porém, situa-se na escala reduzida da igreja local.
O teólogo preocupa-se com a relação crítica entre fé e cultura, o ministro, por
ser dogmático, moraliza (engessa) essa relação. O teólogo preocupa-se com a fé
das pessoas (ortodoxia), o ministro deve preocupar-se com as pessoas da fé. O
problema é quando ministros querem ser teólogos e teólogos ministros. Ministros
preocupam-se com uma igreja local, teólogos, com uma denominação inteira ou com
a cristandade de forma genérica, e para sobreviver, são professores e
escritores, em suma, vivem na academia. Teólogos são pregadores eventuais,
ministros porém, são teólogos ocasionais. Embora eu me destaque na pregação,
creio que em outras áreas como ministro eu seria um desastre.
Gosto
de pregar, contudo, a constância na rotina homilética, empobrece o pensamento
do pregador e por isso, também o sermão, o que é inevitável. Escrevendo, pude
expressar sentimentos a ouvintes que não existiam, e até hoje não sei se
existem. A ausência de uma rotina homilética torna o sermão sempre mais
estimulante. Deixando claro que o sermão não é a mesma coisa que a palavra de
Deus. O sermão consiste numa exposição a respeito da relação que a palavra de
Deus (que é Cristo) mantêm com um ambiente histórico-cultural específico.
Condenei-me
à solidão. Desisti de qualquer expectativa quanto uma futura vida amorosa. O
que isso significa? Significa que estou livre. Mas a liberdade é uma dor, não
um prazer. É assumir a completa responsabilidade por si mesmo. Deixe-me ser
explícito: a vida amorosa me compromete com a vida de outra pessoa (mulher e
filhos), de maneira que, arriscar à vida é comprometer nesse risco outras
pessoas. É preciso, portanto, aprender a medir palavras e ações. Sozinho,
comprometo-me apenas a mim mesmo, com minhas palavras e ações. Eu sou livre
para ousar, contestar, para agir. Não é por acaso que muitos profetas
celibatários (como João Batista) eram excessivamente duros no discurso.
Com
o aumento do número de cristãos nominais, ações evangelísticas serão cada vez
menos necessárias. Num futuro não muito distante, passaremos a brigar por
membros de outras igrejas; demonizaremos outras igrejas e divinizaremos a
nossa. Essa é uma tendência natural de um país cada vez mais evangélico, onde
todos se consideram cristãos. Seguindo essa tendência “evangelística”, no
futuro, acabaremos por destruir uns aos outros, pois o referencial de “ganhar
almas” será substituído (por todos já considerarem-se cristãos) por “quem
realmente está salvo”. Esse tipo de problema já está entre nós, e se agravando
com o tempo. A igreja evangélica é um circo e muito embora a IBVN não esteja no
centro das atenções, no picadeiro, participa, de forma passiva e pacífica, da
platéia.
Não
consigo ler o Novo Testamento sem no mínimo ser invadido por uma profunda
tristeza. A distância de valores entre a igreja contemporânea e a igreja do
Novo Testamento é gritante. Esse tipo de constatação é razoável enquanto mera
concepção intelectual estéril, entretanto, quando essa concepção torna-se cada
vez mais agressiva, percebo tratar-se de que Deus, pessoalmente, tem me exigido
uma reação. Não se trata porém de um ato heróico, pelo contrário, não é
possível obedecer a Deus sem a incompreensão dos homens. Não é possível
obedecer a Deus com o reconhecimento das pessoas.
O
que fazer? À medida que tais indagações se intensificam em meu interior,
sinto-me grande demais, com pouco espaço disponível, comprimido dentro da
instituição cristã, por outro lado, do lado de fora, sinto-me completamente
insignificante. Mas em ambos os lados, irrelevante, inútil tal como sou. Esse
impasse, naturalmente, tem me levado a imobilidade. Vinho novo não pode encher
odres velhos, pois os odres se romperiam. Sabemos disso. A cristandade está
envelhecida, pois, muito embora Cristo seja o convidado de honra de nossos
cultos, não é mais ele quem ministra. Sinto medo, pois há tanta coisa em meu
coração que sinto poder destruir, sem intenção, meio mundo. Uma parte de mim
deseja ir em frente, sabendo que muita gente se sentirá incomodada, magoada,
afrontada com isso, outra parte simplesmente deseja permanecer onde está, do
jeito que está e não incomodar ninguém.
O
horror que muitos cristãos podem ter ao ler esta carta apenas torna evidente
que minhas palavras, assim como tudo o que já escrevi anteriormente, não
constitui de simples poesia, mas que reside nelas uma seriedade que até aqui,
sinto serem ignoradas. Agradeço muito à Talita Pinho pela lembrança freqüente
aos meus eventuais sermões. Isso faz muita diferença pra mim.
Esta
não é uma carta feita por um rebelde. Rebeldes procuram justificarem-se a si
mesmos como solução para um tipo de problema. Rebeldes costumam justificarem-se
como corretos e os outros como equivocados. A palavra de Deus, que é Cristo (e
somente ele) é correta, eu não. Estou inserido no erro, faço parte dele. No
erro de até aqui ter de me esquivar de responder com ações, a radicalidade do
evangelho que consiste em deixar tudo e seguir a Jesus. Caríssimos, não podemos
viver duas vezes. Ou se vive o evangelho ou simplesmente não se vive. Queremos
inventar um meio termo que chamamos hoje de igreja evangélica.
Minha
intenção com esta carta, através de uma exposição muito sincera, foi tentar
esclarecer para mim mesmo e para outras pessoas, como minha compreensão da fé
cristã não pode ser separada da minha vida, e como uma responde constantemente
à outra. Cheguei a um nível de compreensão que exige de mim uma reação, e não a
simples observação dos acontecimentos. Não sei dizer se isso implica um
rompimento. Em caso positivo, a questão já está resolvida, se não, mudanças
terão de ser feitas e de maneira drástica. Em breve, enviarei um texto curto
com algumas sugestões.
Em
Cristo,
Diogo
Santana.
[1] O que quero dizer explicitamente é como
entendo o cristianismo pessoalmente e como essa visão do evangelho e do cristianismo como tal,
desenvolveu minha visão de mundo. Todo cristão precisa ter esse tipo de
consciência, pois cada um responderá por si mesmo a Deus. Sendo assim, o padrão
sempre é pessoal, não o de outrem. Serei julgado pelo que eu acredito, não
pelo que o outro acredita ou porque
acredito porque o outro acredita. Muitos
cristãos quando conscientes dessa necessidade caem no desespero, pois descobrem
que efetivamente não possuem uma concepção pessoal sobre nada. Essa é uma das
urgências que pretendo tratar neste texto.
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