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sábado, 21 de abril de 2012

Mensagem à Cristandade


À Igreja Batista de Vila Norma,
Ao Corpo Diaconal,
Ao Pastor Paulo Rodrigues Lima.


S
audações em Cristo!
Minha ausência tem motivado uma série de suposições, dentre os quais se tornou evidente algum esclarecimento a respeito. Reconheço que ultimamente, o desânimo é a principal causa de tal ausência. Desejo aqui, tornarem públicas muitas inquietações que visam esclarecer essa questão. Serei o menos teológico possível, pois não tenho a intenção em desenvolver um debate, contudo, às vezes isso será inevitável e tedioso. Por outro lado, simultaneamente, farei uma retrospectiva sobre minha presença entre os irmãos e sobre como os acontecimentos presentes estão vinculados, direta ou indiretamente a eles. Por favor, peço que não tenham conclusões precipitadas antes do fim desta carta, que em essência deve ser compreendida como uma convicção particular da fé cristã, algo necessário a qualquer cristão[1]

Gostaria de evidenciar, o que estou passando de forma alguma se relaciona a uma “crise de fé”, pelo menos na forma como entenderíamos o termo de maneira convencional. Crises desse tipo são oriundas da constatação sincera de que existe um abismo tão grande entre Cristo e a cultura (nossa forma enquanto povo, de entender a realidade a partir das ciências, filosofias, religiões ou qualquer outro paradigma dominante) que ou Cristo é uma mentira cultural (sendo por isso parte da cultura, relativo e “inventado” socialmente) ou é a cultura que se trata de uma mentira espiritual (2ª Co. 4.4). A cultura consiste no esforço humano em conhecer a verdade. Sendo a cultura uma mentira, nosso esforço em chegar à verdade é enganoso e inútil. A verdade não pode vir de nós, vem de fora. Jesus Cristo se torna a verdade quando tomamos consciência que todo o resto (isto é, o que está fora de Jesus Cristo) é uma mentira.
Esse tipo de constatação, quando ausente de outras convicções pode acalmar a consciência de muitos cristãos imaturos, contudo, levando-os à intolerância no que se refere a cultura (sobre isso desejo abordar posteriormente). 

Esse tipo de crise entre fé e cultura afetou-me quando eu tinha apenas quinze anos. Fui educado como um assembléiano zeloso, moralista, e acima de tudo, vendo Deus como um ser de tendências punitivas (ideologia oriunda de uma hierarquia religiosa autoritária e manipuladora). Tal tendência, aliada ao meu temperamento introspectivo, tímido e cortez, assim como a convivência com um pai extremamente regulador, que vivia da censura ao meu comportamento enquanto cristão (fundada basicamente numa exigência cada vez maior de obediência cega, mesmo quando equivocada, a sua autoridade) produziram em mim uma melancolia cada vez mais intensa e depressiva. Era comum nesses dias eu me trancar no banheiro (único lugar possível para se ficar sozinho numa casa sempre cheia) e ficar horas às lágrimas ao lado de uma bíblia, a fim de obter alguma palavra de consolo. Curioso era perceber que nesses momentos de lágrimas secretas (pois nunca gostei de chorar em público, apenas em raríssimos casos inevitáveis), sentia que poderia me dirigir a Deus sem reserva alguma, diferente do que acontecia na igreja, onde era preciso manter certa formalidade. Em cerca ocasião,na época, uma senhora muito idosa procurou-me após o culto e disse: “Você será um grande pastor, mas sofrerá muito pelo Cristo que você serve”. Se ela apenas tivesse dito metade do que disse, é muito provável que hoje, eu teria abandonado o evangelho. 

A consciência de que seguir a Jesus é sofrer por ele tem me acompanhado de forma clara desde então. Como conseqüência, não consigo deixar de crer em Jesus Cristo, embora muitas vezes, secretamente eu deseje isso. Não se trata porém, de uma simples concepção intelectual. Sou prisioneiro de Deus, tal como Jeremias (profeta a quem me identifico intensamente desde a infância), contudo, não sei dizer, se entre outros prisioneiros de Deus eu poderia me comparar a Bonhoeffer. Os presbiterianos definem essa experiência de “prisão” como a própria evidência da predestinação,entretanto, pessoalmente, não tenho interesse nesses assuntos. Enquanto minha fé permanece inabalável, é como se Deus reconhecesse que não há a mínima necessidade para que se manifeste objetivamente.  Todavia, é nos momentos de dúvida,  onde é preciso uma decisão, que Deus se manifesta, colocando em dúvida, não a minha fé, mas a minha própria incredulidade. Hoje reconheço em minha primeira crise de fé, o impulso para que buscasse uma comunidade cristã culturalmente mais maleável, onde a cultura da bíblia estivesse separada da verdade da bíblia, e onde esta verdade estivesse próxima da minha cultura. Esse foi o impulso existencial para que eu me tornasse batista, recendo as bênçãos de minha mãe ao tomar tal decisão. Todas as outras justificativas foram construções elaboradas ao longo do tempo.  

Fazer da Igreja Batista de Vila Norma a “Igreja da Família” é bem sugestivo, mas pouco original: não é por acaso que boa parte da membresia seja constituída por famílias. Outro fator importante é notar que muitas dessas famílias são formadas dentro da igreja. Em meu coração, não pude deixar de concluir que existe um propósito divino para isso, e que esse propósito consiste justamente no fato de que Deus os quer ali. De que cada indivíduo não poderia estar em lugar melhor para o seu crescimento pessoal. Contudo, esse propósito do indivíduo na comunidade somente testifica-se com a formação de sua família nessa mesma comunidade. Por essa razão, creio que o único lugar onde Deus exige de mim que cresça, consiste onde constituirei minha família. Não creio ser a Igreja Batista de Vila Norma esse lugar. 

Mas, e se de fato, o que Deus exige de mim é a solidão? Em mim não se trata de uma indagação recente. A solidão constitui um peso que me acompanha desde a infância. A princípio, através de uma personalidade melancólica e introspectiva. Esse tipo de temperamento motivou em mim a criação de um mundo interior, responsável inclusive por inferir em mim seriedade a respeito da minha fé. Contudo, se interiormente há um mundo inteiro, exteriormente não havia absolutamente nada. Não havia profundidade em meus relacionamentos sociais. Como conseqüência, ao longo do tempo, produzi uma distância não-intencional com as pessoas, que normalmente correspondiam com desprezo e indiferença. Para os mais religiosos essa distância poderia apenas ser interpretada como um tipo de santidade monástica (produto de nossa herança puritana e farisaica, tal como o sacerdote da parábola que evita o homem estirado à beira do caminho a fim manter sua aparente incorruptibilidade) ou para as jovens cristãs solteiras, poderia ser facilmente interpretado como insosso, incapaz de manter um relacionamento amoroso. A parábola do bom samaritano convenceu-me particularmente da urgência em construir um universo exterior onde existam pessoas e eu não esteja sozinho no universo. Para muitas jovens cristãs a “santidade monástica” (no sentido positivo que ofereço ao termo, meu espírito introspectivo) é incompatível com a possibilidade de uma vida amorosa. Onde se leva em consideração a aparência (a vida amorosa dos jovens) eu permaneço uma incógnita (por ser introspectivo e sem aparência desejável). Durante muito tempo isto constituiu uma dor, hoje, desesperançado quanto a tal possibilidade (pois infelizmente, na prática, um jovem mulher cristã, possui os mesmos métodos para avaliar um pretendente que qualquer outra jovem mulher, ou seja, sem qualquer critério cristão) me dedico à crítica a tais valores corrompidos, sem contudo, apelar à moralismos. 

Contudo, e se de fato, o que Deus exige de mim seja a solidão? O celibato de muitos profetas não foi um dom, foi uma imposição divina, justamente porque no futuro, eles seriam mártires. Não deixando no mundo uma viúva e filhos órfãos. Se Deus me exige a solidão, igualmente me exige o martírio. É por isso que o celibato institucional constitui uma meia verdade. Não leva a sério às conseqüências dessa escolha. Se Deus, de fato, me exige a solidão, não haveria qualquer igreja em que me sentiria pleno, realizando o que de fato nasci para fazer. Nesse caso, Deus exigiria de mim mais do que uma congregação local me exigiria. A apatia torna-se, portanto, por conta da presente imobilidade, inevitável. 

A tarefa do teólogo, diferente da tarefa pastoral, não consiste em justificar o status quo do cristianismo institucional. Sua preocupação é, a partir de um permanente questionamento, entender para onde estamos indo com a igreja. A tarefa do teólogo é crítica, do ministro porém, dogmática. O teólogo preocupa-se com o cristianismo em sua dimensão global, o ministro porém, situa-se na escala reduzida da igreja local. O teólogo preocupa-se com a relação crítica entre fé e cultura, o ministro, por ser dogmático, moraliza (engessa) essa relação. O teólogo preocupa-se com a fé das pessoas (ortodoxia), o ministro deve preocupar-se com as pessoas da fé. O problema é quando ministros querem ser teólogos e teólogos ministros. Ministros preocupam-se com uma igreja local, teólogos, com uma denominação inteira ou com a cristandade de forma genérica, e para sobreviver, são professores e escritores, em suma, vivem na academia. Teólogos são pregadores eventuais, ministros porém, são teólogos ocasionais. Embora eu me destaque na pregação, creio que em outras áreas como ministro eu seria um desastre. 

Gosto de pregar, contudo, a constância na rotina homilética, empobrece o pensamento do pregador e por isso, também o sermão, o que é inevitável. Escrevendo, pude expressar sentimentos a ouvintes que não existiam, e até hoje não sei se existem. A ausência de uma rotina homilética torna o sermão sempre mais estimulante. Deixando claro que o sermão não é a mesma coisa que a palavra de Deus. O sermão consiste numa exposição a respeito da relação que a palavra de Deus (que é Cristo) mantêm com um ambiente histórico-cultural específico.  

Condenei-me à solidão. Desisti de qualquer expectativa quanto uma futura vida amorosa. O que isso significa? Significa que estou livre. Mas a liberdade é uma dor, não um prazer. É assumir a completa responsabilidade por si mesmo. Deixe-me ser explícito: a vida amorosa me compromete com a vida de outra pessoa (mulher e filhos), de maneira que, arriscar à vida é comprometer nesse risco outras pessoas. É preciso, portanto, aprender a medir palavras e ações. Sozinho, comprometo-me apenas a mim mesmo, com minhas palavras e ações. Eu sou livre para ousar, contestar, para agir. Não é por acaso que muitos profetas celibatários (como João Batista) eram excessivamente duros no discurso. 

Com o aumento do número de cristãos nominais, ações evangelísticas serão cada vez menos necessárias. Num futuro não muito distante, passaremos a brigar por membros de outras igrejas; demonizaremos outras igrejas e divinizaremos a nossa. Essa é uma tendência natural de um país cada vez mais evangélico, onde todos se consideram cristãos. Seguindo essa tendência “evangelística”, no futuro, acabaremos por destruir uns aos outros, pois o referencial de “ganhar almas” será substituído (por todos já considerarem-se cristãos) por “quem realmente está salvo”. Esse tipo de problema já está entre nós, e se agravando com o tempo. A igreja evangélica é um circo e muito embora a IBVN não esteja no centro das atenções, no picadeiro, participa, de forma passiva e pacífica, da platéia. 

Não consigo ler o Novo Testamento sem no mínimo ser invadido por uma profunda tristeza. A distância de valores entre a igreja contemporânea e a igreja do Novo Testamento é gritante. Esse tipo de constatação é razoável enquanto mera concepção intelectual estéril, entretanto, quando essa concepção torna-se cada vez mais agressiva, percebo tratar-se de que Deus, pessoalmente, tem me exigido uma reação. Não se trata porém de um ato heróico, pelo contrário, não é possível obedecer a Deus sem a incompreensão dos homens. Não é possível obedecer a Deus com o reconhecimento das pessoas. 

O que fazer? À medida que tais indagações se intensificam em meu interior, sinto-me grande demais, com pouco espaço disponível, comprimido dentro da instituição cristã, por outro lado, do lado de fora, sinto-me completamente insignificante. Mas em ambos os lados, irrelevante, inútil tal como sou. Esse impasse, naturalmente, tem me levado a imobilidade. Vinho novo não pode encher odres velhos, pois os odres se romperiam. Sabemos disso. A cristandade está envelhecida, pois, muito embora Cristo seja o convidado de honra de nossos cultos, não é mais ele quem ministra. Sinto medo, pois há tanta coisa em meu coração que sinto poder destruir, sem intenção, meio mundo. Uma parte de mim deseja ir em frente, sabendo que muita gente se sentirá incomodada, magoada, afrontada com isso, outra parte simplesmente deseja permanecer onde está, do jeito que está e não incomodar ninguém. 

O horror que muitos cristãos podem ter ao ler esta carta apenas torna evidente que minhas palavras, assim como tudo o que já escrevi anteriormente, não constitui de simples poesia, mas que reside nelas uma seriedade que até aqui, sinto serem ignoradas. Agradeço muito à Talita Pinho pela lembrança freqüente aos meus eventuais sermões. Isso faz muita diferença pra mim. 

Esta não é uma carta feita por um rebelde. Rebeldes procuram justificarem-se a si mesmos como solução para um tipo de problema. Rebeldes costumam justificarem-se como corretos e os outros como equivocados. A palavra de Deus, que é Cristo (e somente ele) é correta, eu não. Estou inserido no erro, faço parte dele. No erro de até aqui ter de me esquivar de responder com ações, a radicalidade do evangelho que consiste em deixar tudo e seguir a Jesus. Caríssimos, não podemos viver duas vezes. Ou se vive o evangelho ou simplesmente não se vive. Queremos inventar um meio termo que chamamos hoje de igreja evangélica. 

Minha intenção com esta carta, através de uma exposição muito sincera, foi tentar esclarecer para mim mesmo e para outras pessoas, como minha compreensão da fé cristã não pode ser separada da minha vida, e como uma responde constantemente à outra. Cheguei a um nível de compreensão que exige de mim uma reação, e não a simples observação dos acontecimentos. Não sei dizer se isso implica um rompimento. Em caso positivo, a questão já está resolvida, se não, mudanças terão de ser feitas e de maneira drástica. Em breve, enviarei um texto curto com algumas sugestões.

Em Cristo,
Diogo Santana.


[1]  O que quero dizer explicitamente é como entendo o cristianismo pessoalmente e como essa visão do   evangelho e do cristianismo como tal, desenvolveu minha visão de mundo. Todo cristão precisa ter esse tipo de consciência, pois cada um responderá por si mesmo a Deus. Sendo assim, o padrão sempre é pessoal, não o de outrem. Serei julgado pelo que eu acredito, não pelo  que o outro acredita ou porque acredito porque o outro acredita.  Muitos cristãos quando conscientes dessa necessidade caem no desespero, pois descobrem que efetivamente não possuem uma concepção pessoal sobre nada. Essa é uma das urgências que pretendo tratar neste texto.

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