- A letra mata meu filho!
Era o que dona Ana dizia ao seu filho, citando o apóstolo Paulo. Diferente dos irmãos, não brincava de bola ou rodava pião, não tomava banho de rio. Havia nascido velho. Sua única diversão consistia, depois da escola, em passar as tardes distraído em leituras que se estendiam até a hora do jantar. De família pobre e devota, um exemplar da bíblia lhe servia como único estímulo à vida tranqüila e imaginação fértil. Ao longo do tempo, os poucos livros guardados debaixo da cama foram substituídos por uma estante abarrotada pelos clássicos da literatura, da filosofia e da teologia. As horas dedicadas à leitura eram divididas à paixão pela escrita.
O menino queria ser escritor, os pais, no entanto, lhe desejavam a carreira de funcionário público. Com um bom salário e estabilidade financeira suficiente que lhe permitisse se casar depressa. O tempo passa e aos vinte e cinco anos, vivendo de sonhos e empregos modestos, não há mulher que se interesse por homens dessa espécie! Conseguiu ao custo de meses de salário guardados numa lata, publicar o seu primeiro livro. Era como seu filho.
- Vagabundo! Não vou me matar de trabalhar para sustentar um homem feito até o dia em que eu morrer. Era o que seu pai dizia!
Saiu de casa. Com uma mochila de roupas e uma mala de livros. Andando sem rumo pela cidade, e à medida que o sol baixava guarda, sabia que se tornava urgente um lugar para dormir e alguma coisa para comer. Dirigiu-se ao bar mais movimentado que encontrou, com a esperança de que se ao menos conseguisse vender um livro apenas, poderia fazer um lanche e pagar a diária num modesto hotel para solteiros. Cansado de andar, a boca seca e a sede lhe desfavoreciam a voz, já fraca, rouca e baixa. Numa situação com essa é impossível pensar com clareza, quanto mais se expressar com erudição. Retirando da mala alguns exemplares, ensaiou um sorriso forçado, respirou profundamente e se aproximou timidamente de uma das mesas, onde um senhor de cabelos grisalhos, com uma cerveja importada nas mãos, sentava-se solitário.
- Boa tarde. Estou aqui divulgando meu trabalho literário. Há algum tempo, ao custo de muito sacrifício, consegui publicar meu primeiro livro e...
Foi interrompido. Sem muito esforço, não só o pacato senhor de cabelos grisalhos como todas as outras mesas que silenciosamente observavam tal diálogo, sabiam onde queria chegar o jovem escritor.
- Interessante. Do que trata o seu livro?
- Na verdade se trata de um conjunto de crônicas. Em sua maioria sobre teologia.
- Não obrigado. Fica para uma próxima vez. Porque você não tenta divulgar o seu trabalho numa igreja ou seminário?
Entra na primeira igreja que vê aberta. Trata-se de uma antiga loja adaptada, com bancos de madeira e um púlpito muito simples, enfeitado com algumas flores artificiais. O culto ainda não começou, os féis aguardam em silêncio. O pastor chega e ao notar o inesperado visitante, se dirige a ele, o cumprimenta com um forte aperto de mão e um sorriso.
- Gostaria de falar com o senhor rapidamente.
- Pois não..
- Estou aqui divulgando meu trabalho literário. Há algum tempo, ao custo de muito sacrifício, consegui publicar meu primeiro livro e...
Novamente foi interrompido.
- Aqui o único livro que interessa é a bíblia! Teologia é coisa de homens. No entanto, vou comprar um livro seu pra ajudá-lo e divulgar ao final do culto.
Enfim, alguma esperança. Entrega ao pastor um exemplar, assiste pacientemente o culto, e no final de tudo, nenhuma palavra sobre o bendito livro.
- Desculpe meu irmão, acabei por esquecer. Teria como voltar na próxima reunião?
Ao relento pelas ruas do Rio de Janeiro, o pobre jovem escritor, se vê obrigado a pedir esmolas, sem contudo, largar da mão a preciosa mala cheia de livros. Ele enlouquece, adoece e morre. Enfim a mala é aberta, e o que se encontrou lá, corroído pelas traças e amarelado pelo tempo, surpreendeu pela beleza. Era eterno. E resolveram publicá-la, lançá-la na mídia, ganhar dinheiro com ela.
Um comentário:
Gostei desse post. Isso me cheira à biografia não-anônima pra mim, rsrs
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