Deus existe?
Uma questão cheia de equívocos. Existe uma longa história para que essa pergunta ganhasse os contornos que possui hoje toda vez que a fazemos.
O que é Deus?
Uma pergunta grega sobre a questão. Para o grego Deus é Theós. Etimologicamente difícil de traduzir, entretanto, arriscaria dizer se tratar da consciência do mistério da vida, do mundo, do outro, de si mesmo. Qual é o propósito do mundo? Qual é o propósito de estarmos no mundo? Esse mistério, presente, porém velado, os gregos chamavam de Theós, o fundamento, o propósito de todas as coisas, a essência em si mesma. Para o grego Theós é o mistério velado sobre a vida. Um mistério que inquieta e angustia, e que, portanto, nos força a tornarmo-nos abertos para o mundo, outro e nós mesmos. Para Heidegger a presença do mistério (do Theós) é caracterizada pela consciência da finitude. É consciente de sua transitoriedade que o homem indaga pelo sentido, e isso o permite abrir-se para o mundo.
Essa abertura produzida pela presença do mistério é definida pelo grego como Philía. Essa aproximação do homem com o mistério (o Theós) por intermédio da reflexão, pela busca de sentido, o grego entendia como a busca da sabedoria em si mesma, da Sophía. A Philosophía nasce, portanto da consciência do mistério e de uma relação com ele. É, portanto, primariamente uma Theophilía. O amor à sabedoria é o amor ao Deus. Amor aqui entendido como inquietação e abertura. A Sophía portanto é o próprio Theós. O sábio portanto, seria o próprio Theós ou então portador de sua palavra (o logos).
Os gregos consideravam a existência de sete sábios, portadores do logos do Theós. Pré-socráticos respectivamente: Tales de Mileto, Periandro de Corinto, Pitaco de Mitilene, Bias de Priene, Cleóbulos de Lindos, Sólon de Atenas e Quílon de Esparta. Todos eles, estadistas ou legisladores, que muito contribuíram para o desenvolvimento social e político. Para Platão a filosofia consistia propriamente na amizade (afeição) pela sabedoria dos sábios, isto é, pelos ensinamentos dos sete sábios pré-socráticos. Por serem representantes do Estado grego, o poder político lhes oferecia a autoridade religiosa. Eram verdadeiros messias para o seu povo. Tanto, a ponto de muitas máximas de tais sábios serem inscritas no templo de Apolo (o deus da palavra, do logos) em Delfos.
Entretanto, como a Theophilía se torna a Theología?
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (João 1.1).
Para os gregos, assim como para João, o logos é a manifestação do Theós. O logos é a manifestação do Theós através da linguagem, e por isso mesmo, é discurso. O discurso enquanto manifestação do Theós é o seu fenômeno, e não necessariamente a coisa em si kantiana. A fenomenologia se torna então o fundamento pelo qual uma theologia se torna possível, pois descreve não o Theós, mas sim como ele se manifesta, como ele se revela, como ele se torna pronunciável. A theologia nasce a partir da manifestação do Theós enquanto fenômeno. Esse fenômeno é o discurso que o Theós faz de si mesmo, e que por isso, é revelação.
Na Grécia o portador do logos se estabelecia como um legislador ou estadista. O portador do logos divino era um representante do Estado. O cristianismo altera profundamente essa visão, onde o portador do logos, assim como a manifestação do próprio logos divino, é um humilde e pobre camponês da Galiléia. O logos é Jesus Cristo, desse modo, a teologia se estabelece como a manifestação de Deus enquanto (como e em) Jesus. Karl Barth define teologia como um falar a partir de Deus, a partir do Theós. O Theós em si mesmo sempre nos será vedado. Sendo assim, podemos definir teologia como um falar sobre Deus a partir de Jesus Cristo, o que significa um falar sobre Deus a partir do pobre, do misericordioso, do perseguido, do crucificado pela Polis.
O cristianismo irá se destacar de outras religiões, porque nela, Deus existe. Pensar que um Deus existe já é humaniza-lo, e isso é um conceito propriamente judaico-cristão e equivocadamente afirmado como sendo grego. Antes do judaísmo/cristianismo nenhum Deus “existia” propriamente. Os deuses gregos embora com sentimentos (bons e maus) humanos, se diferenciavam de nós por serem incapazes de amar, assim como expressar diante do homem suas fragilidades. O termo “existir” não define especificamente o fato de aparecer no mundo. Antes, define uma relação com ele. Uma relação de transitoriedade, mutabilidade, de crise. O homem existe, e isso significa que ele tem consciência de sua transitoriedade, de que ele não é permanente. Existir consiste na reação que tomamos diante da consciência de nossa transitoriedade, que tanto pode se estabelecer a partir de uma conformação ou uma permanente inquietação e angústia. Deus existe, e isto significa que ele se torna transitório, humano.
Em Jesus, Deus existe, e por isso sofre.
Num sentido amplo, define-se teologia como um discurso sobre o divino. Dessa maneira, se torna explícito de que existem outras formas de discurso sobre o sagrado, que não pertencem a ela. Por ser ampla, a definição de teologia enquanto discurso é incompleta, pois a pluralidade que lhe determina a abrangência lhe inibe de identidade, lhe condenando à abstração. A teologia enquanto puro discurso revela a imagem de uma divindade sem rosto e sem nome, distante dos homens, enquanto os mesmos, suplicantes, não cessam de reclamar diante de vários altares que essa mesma divindade se revele, apareça. O grande equívoco que estabelece tal abstração é fundado numa imprecisão sobre os fundamentos desse discurso. Desse modo, não podemos falar em teologia, mas em teologias.
Esse discurso sobre o divino não deve se limitar a um monólogo. Não é o homem que fala à Deus, e este, paciente e mudo, lhe escuta. Estaria o criador do mundo próximo da figura de um psicanalista freudiano? O homem não está em condições de fazer exigências a Deus. Tornou-se o criador o serviçal obediente de suas criaturas? Todavia, a teologia não deve se restringir apenas à definição de um Deus que fala ao homem. Há uma resposta. Falando ao homem, o criador se revela, mostra seu rosto, seu nome, sua identidade.
O discurso teológico se define precisamente como um diálogo. É exatamente esse diálogo que lhe distingue de outras formas de discurso sobre o sagrado. Diálogo que ilumina o sentido de religare, de religação com o sagrado. O religare se torna inevitavelmente uma forma de discurso, de fala. É oração, porque o homem fala a Deus, tentando, com a suas limitações se aproximar dele[i], pergunta; mas é também revelação, porque Deus também fala ao homem, lhe responde.
Esse diálogo é histórico, logo, marcado por registro no tempo e no espaço, e que por isso, participa da vida dos homens do presente e do futuro. Por ser histórico esse diálogo pode ser transmitido por meio de registro. Um registro que evolui ao longo do tempo: tradição oral, escrita, áudio, visual e sensorial. Nascem a bíblia e os ritos de culto, sínteses do registro histórico de diálogo entre o humano e o divino.
Esse diálogo registrado no tempo é fundado numa tensão, numa crise, logo de primária oposição, de distância, e interesse de conciliação entre o material e o espiritual, entre o céu e a terra, entre théos e Cosmos (e indiretamente physis – a natura). Teologia se realiza por meio de uma tensão, cuja meta é conciliação. A teologia enquanto diálogo tenso entre Deus e o mundo (sociedade) é crítica. A teologia não pode escapar de ser uma crítica da sociedade, seus paradigmas e vícios, seus valores. Os limites dessa crítica determinarão o sentido próprio de se fazer teologia, bem como sua finalidade na sociedade. Uma crítica moderada reflete apenas uma proposta de reforma, sem, contudo alterar os fundamentos anteriormente já instituídos. Reflete apenas uma intensão conservadora, de atenuar conflitos, mas não de extingui-los. Uma crítica radical reflete uma intensão radical de ruptura. Alguns, mais moderados, pensam que tal ruptura radical se realiza de maneira progressiva, outros, no entanto, defendem uma ruptura imediata. Estes, com freqüência são estigmatizados e estereotipados como anti-sociais ou excêntricos, quanto mais, enquanto cristãos.
[i] A oração, enquanto situada num discurso do homem para Deus, determina seu esforço em dirigir-se a ele por sua própria compreensão sobre o sagrado. É antropológica em si mesma. No NT a oração destituída de revelação não tem valor, ganhando por isso, biblicamente, um valor antropo -teo –lógico.
Um comentário:
Ótimo texto, Diogo!
Faça de sua vida um discurso contínuo sobre o divino!
Assim tua vida será realmente uma vida teológica!
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