1-
Acredito que tanto ateus quanto cristãos definem
suas convicções a fim de que suas vidas de alguma forma tenham algum sentido.
Uns através da afirmação e outros através da negação da existência de Deus. Em
outras palavras, de que para uns viver só é possível com e outros sem a
necessidade de um Deus.
2-
Em termos de conhecimento (epistemológico) é
impossível saber. A grande marca de nossa civilização é acreditar na
imparcialidade do conhecimento que nós mesmos produzimos. De reificá-lo através
da crença numa razão abstrata e universal ( como defendem Kant e Hegel),
conferindo-lhe uma autoridade absoluta e totalizante. Uma grande tolice, pois a
civilização apenas produz conhecimento útil para si mesma: o que não é útil é
descartado como ultrapassado e irracional. Nesse sentido, todo conhecimento é
parcial e não determina evolução.
3-
Suspeito que não há uma distância significativa
entre nós, homens de civilização, e aqueles que nos antecederam, cercados de
mitologias e crenças. Se não temos religião, ou crenças ou qualquer outra
espécie de cosmologia que definiríamos explicitamente como mitológicas, é
porque evidentemente, mentimos sobre nós mesmos ou concedemos às nossas
mitologias o perigoso patamar de uma perfeita descrição da vida.
Particularmente, compreendo o homem moderno como o mais mitológico de todos,
criando a ilusão de ser aquela entidade especial no universo que superou o
mito, que se “esclareceu”, ganhando autonomia e garantindo certa medida de
felicidade para a próxima geração. Ou que pelo menos acredita estar a caminho
disso. Substituímos (como homens racionais que somos) uma mitologia por outra.
E acreditamos que fizemos progresso. E para justificar o progresso, afirmamos
que a vida ficou melhor, que substituímos fogueiras por micro-ondas, e a
expectativa de vida aumentou. Que a utilidade constitui o valor supremo que
define a razão para tudo. Que constitui o sentido. Um homem do paleolítico não
pode reclamar de não ter um micro-ondas, e é perfeitamente feliz com isso, tal
como nós somos com os nossos micro-ondas. Entregue um micro-ondas a um homem do
paleolítico, e ele não verá sentido nele – a menos que aprenda, e isto
significa, ser situado num outro tipo de racionalidade, civilização, mitologia,
de cosmovisão de mundo. O que a princípio, ele julgará ser a coisa mais absurda
do mundo e até objeto de riso. De igual maneira, faça um homem “civilizado”
viver entre homens do paleolítico: que aprenda a caçar, a fazer fogo, e a se
proteger da chuva, do frio e de animais perigosos. Não haverá sentido numa vida
assim, pois ambos (homem antigo e moderno) sempre preferem a vida que tem, como
a mais óbvia e racional de todas. Justamente porque é uma vida já estabelecida,
e por isso, sempre julgada a mais confortável.
4-
A civilização sempre está em adaptação: antigas
formas de se compreender a relação entre homem, natureza e produção de meios de
subsistência precisam ser descartados e substituídos constantemente. Origem de
todo o poder. Sendo assim, nenhuma forma de conhecimento, logo, justificativa
de qualquer racionalidade, pode ser imparcial. Que todo conhecimento procura
justificar uma forma de poder.
5-
Crer ou não em Deus estabelece uma forma de
poder. Contudo, apenas quando crer ou não crer tornam-se formas de conhecimento
sobre a realidade: seja através de teologias (racionalização sobre o sagrado)
seja através das ciências (racionalizações sobre o homem).
6-
O estabelecimento de um poder sempre determinará
politização, e por isso, opressão de um grupo sobre outro: tanto a idade média
(declaradamente cristã) quanto a União Soviética e a China Comunista
(declaradamente atéias) constituem fenômenos de um mesmo princípio.
7-
Se crer ou não em Deus não determinar uma forma
de conhecimento (objetivo e universal), o que determina então?
a)
Que a crença em Deus é anterior ao nascimento da
civilização, e até mesmo contrário a ela. Determina talvez sua origem entre
povos nômades (A história de Abraão, e antecedentes – descendentes de Noé e etc
– exemplificam isso.
b)
Não estabelece, originalmente, algum tipo de
racionalização, mas de experiência subjetiva intraduzível em termos de
conhecimento: mitologia.
c)
Com o crescimento do número de cidades, povos
nômades precisam se sedentarizar: aprender o cultivo renovável do solo, através
de novas tecnologias, aprender a lutar e defender o território e por fim, a ler
e escrever. A pertencer a uma elite. Nesse sentido, a experiência religiosa de
um Deus avesso a civilização, por intermédio de uma elite, começa a se
racionalizar, a se politizar, a defender um partido (a história de José no
Egito é um exemplo disso).
d)
A bíblia inteira é portanto, o testemunho de um
mal-estar civilizatório: de Deus contra a civilização: ora apaziguado por
racionalizações (disputas de poder) ora enfurecido contra a civilização (apocalipses)
por intermédio da tradição profética. E nesse sentido, em termos gerais,
racionalizado, o próprio Deus não pode ter uma personalidade definida: ora
defende a vida, ora autoriza o assassinato, e etc.. É contraditória pois
expressa justamente a tentativa da conservação de uma tradição religiosa nômade
em épocas de sedentarização, de uma paixão numa época de racionalização.
8-
Compreendo o cristianismo bíblico como uma
releitura dessa tradição, feita por intermédio dos profetas apocalípticos. Pois
os apocalipses nada mais são do que isso: a vitória de Deus sobre o mundo, do
campo sobre a cidade, dos camponeses sobre os nobres. Pois o camponês (que é
marginal – e Jesus foi um camponês) é um paradoxo político: está o mais
distante da cidade, mas não completamente ausente dela, sendo assim, o mais
próximo desse Deus camponês e nômade (que cria o jardim do Éden, é o pastor e
faz alusão ao campo o tempo todo). É por isso que a bíblia está cheia de
paisagens idílicas o tempo todo. Estabelece uma tradição nômade para o diálogo
com camponeses e marginais.
9-
E por isso, para a civilização, tudo isso é mito
em seu sentido pejorativo. Porque a própria civilização não pode compreender-se
como vencida, derrotada. Contudo, mito é toda experiência vivida que não pode
ser racionalizada. Que permanece uma incógnita, e que exige apenas uma decisão:
“Escandaliza-te ou crê” nos ensina Kierkegaard. É preciso portanto, compreender
o mito de outra forma.