Seguidores

quinta-feira, 5 de abril de 2012

"Absinto" - Concepção Filosófica da Ficção


Porque o Reino de Deus se manifesta justamente com a chegada da vida eterna? Justamente porque o reino dos homens somente pode subsistir com a permanência da morte, da violência e da injustiça. O eterno e o temporal são elementos característicos que distinguem e identificam o humano e o divino, e enquanto essa heterogeneidade, essa distância persistir, o divino sempre será objeto de veneração e almejo do homem (seja do ponto de vista ontológico, psicológico, social, político e etc.). Constituirá portanto, parte de sua história. Construirá a sua história. Um Deus eterno sempre fará parte da história de um homem limitado pelo tempo. Constitui-se portanto, de uma mútua carência: o homem procura Deus através de seu anseio pela eternidade e Deus procura o homem através de seu anseio pelo tempo, que para o homem é concreto (regulador da vida e da morte, no desenvolvimento e decadência das sociedades e etc.). Esse é um dos sentidos fundamentais da encarnação: Deus se torna homem, mergulha no tempo, afim de que todo homem tenha a oportunidade de mergulhar na eternidade. Esse é o sinal de inauguração do Reino de Deus em Cristo Jesus. Todavia, esse é uma ato realizado pelo próprio Deus, solapando assim todo projeto humano de autonomia. Deus se impõe ao homem, mesmo em amor.

O que significaria vida eterna? O cristianismo se destaca de todas as religiões justamente porque confere à eternidade presente do homem (alcançada mediante a fé) a consciência de que isto significa uma mudança radical de valores. Em outra palavras, ensina que a conduta do homem é naturalmente tendenciosa ao horizonte da finitude. O destino da morte (como aniquilamento total da existência ou incerteza quanto ao futuro pós-morte) constitui a conduta de homens irresponsáveis e omissos aos problemas do mundo e de suas comunidades e mais interessados em sua satisfação pessoal. Conduta típica da maioria. Por outro lado, o cristianismo oferece a vida eterna e insiste entre seus adeptos a pensarem como se vivessem eternamente, mesmo tendo em vista a realidade passageira da morte de sua limitação ao corpo.    

Absinto, embora uma ficção, procura realizar uma reflexão sobre o trajeto de retorno nesse processo, o passo inverso. Procura entender o secularismo, cujo projeto de autonomia, se realizaria de maneira plena a partir da conquista humana da imortalidade. Em sua radicalidade, a “morte de Deus” nietzscheniana é um projeto provisoriamente fracassado. Uma sociedade onde Deus esteja realmente “morto”, onde os homens estejam alheios a qualquer espécie de esperança metafísica, somente ganha sentido com a imortalidade do homem. Dessa maneira, nossa maneira de compreender a civilização mudaria drasticamente.

Sem a morte a violência se tornaria uma forma de diversão. Algo não muito diferente dos nossos dias, mas concerteza, algo bem mais intenso. Declaradamente sarcástico e masoquista. Sem a morte o sexo de igual modo se destinaria apenas para diversão, entretanto, não como uma norma cultural, mas jurídica. O crescente aumento da natalidade extinguiria rapidamente os recursos naturais da terra. Rendendo-se ao divertimento, nossos hábitos sexuais também seriam profundamente alterados, o corpo ganharia uma acentuada valorização, e a busca desenfreada pela satisfação dos sentidos um motivo para guerras. Nasce a partir daí, um novo homem, e por isso, uma nova forma de sociedade e civilização.

Entretanto, o super-homem nietzscheniano não surge apenas da vitória do humano sobre o divino através do roubo de fogo dos deuses, a imortalidade. Não se trata apenas de vencer o divino e a morte, mas também de esquece-lo. Se nossa civilização fora construída a partir da encarnação de Deus na história ocidental, isso produz uma lembrança histórica que torna o divino uma realidade impossível de ser aniquilada. Deus não estaria morto, mas seria transformado, ressuscitado, adaptado às novas circunstâncias. A morte nietzscheniana de Deus se estabeleceria num segundo momento com a aniquilação da memória metafísica. Um procedimento complexo, pois nos referimos ao divino como um conceito enraizado na memória social das civilizações. O grande mentor dessa memória consiste no nosso conceito linear de tempo. Esse mesmo conceito determina nossa forma de produzir, de pensar, de viver e de morrer na cultura ocidental. A morte nietzscheniana de Deus se processaria dessa maneira como um rompimento doloroso de uma civilização com todo o seu passado. Sem memória, tudo deveria ser incessantemente re-criado a cada dia, inclusive a consciência dos homens.

Planeta dos Macacos resgata a idéia de se estar num mundo completamente rompido com o seu passado. Os macacos na realidade são outra espécie de homens oriundas desse rompimento, dessa distância. Criando uma nova civilização, eles criaram um novo começo para o homem, uma nova memória, uma nova história, uma nova forma de contar o tempo. Cidade das Sombras, à sua maneira, também tenta explorar esse conceito. Apoiará toda a sua narrativa na proposta de que a memória é uma constante entre causas e efeitos, lineares ou circulares, determinando assim um conceito específico de temporalidade, logo, de história. Não há passado sem memória, e isso somente pode ser interrompido se o tempo (linear ou circular) deixar de ser uma constante – o que é naturalmente impensável se não alterarmos as leis da lógica e do bom senso. Dessa maneira, o filme irá reduzir a constante temporal o máximo possível (a fim de resguardar ao filme certa coerência lógica). Isso é bem expresso no filme quando os alienígenas apagam a memória dos moradores da cidade a cada noite e a re-programam para o dia seguinte, ou seja, a memória social (logo, a história) é mantida durante apenas todo o decurso do dia, sendo quebrada (perdendo assim sua seqüência lógica) entre um dia e outro. A cada dia uma nova história é contada, uma nova ordem lógica, uma nova memória.

O onírico representa bem essa nova maneira de compreender o tempo, sem ordem lógica e não histórica. O onírico é por si mesmo um mundo sem história, sem passado e sem futuro, sem memória. O filme Um Cão Andaluz de Luiz Bruñel e Salvador Dali, expressa bem esse tipo de universo. Fazendo uma ponte entre Nietzsche e Freud, fica fácil entender que o super-homem nietzscheniano é o próprio Dionísio, um homem ausente de repressões, senhor de sua vontade. Isso somente seria possível de maneira plena com a posse da eternidade. Um homem ausente de repressões é um homem ausente de culpa, logo, de memória também. 

O que seria entretanto, uma civilização dionisíaca, se levarmos em consideração, diferente dos gregos, nossa intensa produção tecnológica? Não existem respostas convincentes para uma questão como essa, entretanto, é possível arriscar. Arriscar fazendo ficção. É essa a proposta desse livro. 

No futuro, os homens vivos poderão viver para sempre ou planejar quando deseja morrer. A descoberta da imortalidade alterou nossa maneira de enxergarmos toda a civilização (o sexo como procriação se tornou um crime, a fim de se evitar a superpovoamento do planeta, todavia, é aceito como pura diversão, gerando as maiores bizarrices; sem a morte o homem não tem medo, não possui dilemas existenciais, todavia, extremamente violento, reinventado o conceito de violência, o aumento da violência gratuita acaba com a amizade e o amor; não há mais morte, contudo há dor, muita dor; sem a morte acreditar em Deus se torna desnecessário). O caso de João é excepcional, pois não se tem notícia, ou tecnologia para se fazer alguém morto a tanto tempo retornar à vida, a não ser através de clonagem. Contudo, clones não possuem a mesma memória da matriz.

O grande enigma do personagem central consiste no fato de que, com o controle de natalidade estagnado, todos os indivíduos são conhecidos por um sistema global. João aparece do nada. Acorda e anda errante num mundo totalmente estranho ao mundo que conhecia no passado. João é reconhecido como um corpo estranho pelo sistema, pois não tem uma origem, e dessa maneira não se sabe o seu fim. Não tem passado. Seu único vínculo com o passado é a sua memória. 

Ele então passa a ser ouvido. Sua memória não apenas expressa doces lembranças pessoais, mas o único registro de uma civilização que fora apagada da história. Interpretar o caso de nosso personagem como um milagre é constrangedor para o futuro. Nessa nova civilização, não há fé ou qualquer registro história das religiões e de Deus. Um mundo onde Deus não existe e por isso mesmo não possui história. O futuro é um mundo sem Deus, sem morte e sem classes (os políticos pensaram: se o poder da imortalidade pertencer apenas aos mais ricos, enquanto houver morte haverá fé em Deus. Alem, disso haverá por parte de uma classe ou outra a justificativa para se pregar eugenia). A partir daí ele conta a história de Deus. Ele se torna um profeta, e por isso mesmo, marginal. E como todo profeta, estabelecerá uma crise no futuro: a morte e ao colapso social.


Nenhum comentário: