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sábado, 24 de novembro de 2012

Capítulo Quatro de "Absinto"


Não se pode afirmar quem se é sem qualquer lembrança. Sem lembrança é impossível afirmar coisa alguma: linguagem, cultura, história, identidade. Não há vida para os que não recordam. Não há morte. Eles sequer existem. Fechados sobre si mesmos não conhecem sentimentos como o amor e o ódio, a tristeza ou a alegria. São imunes a qualquer estímulo de comunicação. Tudo é silêncio. 

 Não reconheço ninguém. Ando sem rumo, pela estrada deserta, sem ser visto. Parece não haver comida ou água em parte alguma. Não sinto fome ou sede. Estou confuso. Angustiado. Se eu chorar e gritar, não haverá quem me escute. Sou como um naufrago em alto-mar. Era o inferno. Eu deveria saber. Mas onde está o fogo e os gritos das almas angustiadas que suplicam por misericórdia? Onde está o diabo e seus demônios? Pois agora sei o que é o inferno: a solidão absoluta, e por toda a eternidade estar preso aos próprios pensamentos e sentimentos, sem possibilidade alguma de expressá-los. Havia me tornado um fantasma. 

As máquinas não páram, não dormem, produzindo controle. O fim do trabalho é o próprio trabalho, pois num mundo sem morte o ócio é muito maior. Não há fome, pobreza ou riqueza. Não há a mínima desigualdade. Sem a morte não há a necessidade de recursos, seja de medicamentos, roupas ou dinheiro. Sem dinheiro, não há diferença entre os homens.


Reunidos, pareciam evocar a morte numa espécie de culto religioso.

Honravam a morte como um Deus que havia prometido retorno. Mas nada de velas, preces ou mortificações de qualquer espécie. Afinal, tudo isso seria inútil. Estavam ali reunidos para lembrar. Para tentar lembrar. A lembrança nos concede a dimensão da passagem do tempo. É com a lembrança que envelhecemos. E morremos.

Tudo da forma mais discreta possível. Havia a crença de quando algum deles se lembrar de tudo, a morte retornaria ao mundo, trazendo a ordem natural de todas as coisas. E assim, num ciclo interminável, pouca antes de suas memórias se esvaírem, as deixavam registradas em desenhos quase infantis, pré-históricos. Havia uma pequena inscrição na parede, sem autor identificável, e que ao menos, pudesse ser lida pelos presentes:

“Lembre-se que nunca foi o que é agora, e por esforço não será amanhã o que é hoje. Lembre-se que já foi jovem, para que reconheça que hoje você envelhece e tenha saudade da juventude. Lembre-se disso a todo custo. Escreva o que vier a cabeça. Você esquecerá desse compromisso freqüentemente. Leio-o sempre embora você se esqueça disso também.”

Uma coisa era certa: no dia em que alguém se lembrasse, morreria. E mortos não podem transmitir o que sabem. Lembrar e morrer são esforços que se fazem por conta própria.

Boa Notícia!

Um deles lembrou, e morreu. Justamente o que entre eles era reconhecido como um poeta. Das imagens. Ficou lá, estirado no chão, apodrecendo e exalando mau cheiro. Ninguém sabia o que fazer com ele. O que fazer com um defunto. A carne foi dando lugar a exposição dos ossos e de alguns órgãos internos. Descobriram do que somos feito. Mas se esqueceram disso.

Estava feito. Alguma coisa nova iria acontecer. O relógio do universo estava começando a girar seus ponteiros novamente.

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